71: Nas Sombras

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Enfrentando uma realidade que não escolhi para mim... vai ver que isso é a vida... não há escolha.
Matthew Stanley










      Olhei o lugar, o Castelo era bem grande, e ainda havíamos percorrido uma pequena parte dele e tudo era o contrário da construção intimidante fortificada que se via por fora, o interior palaciano como em todos os outros cômodos o piso claro mármoreo cor de areia, a tapeçaria de um tipo de tecido macio com desenhos desconexos bordados a mão, cortinas grossas do mesmo vermelho vivo das bandeiras, detalhes dourados nos rodapés e nas paredes, a madeira dos móveis era de um tipo diferente e único de árvore que crescia por ali, era macia e lisa envernizadas de branco ou um tom de marrom escuro, castiçais, candelabros e lustres de cristais cintilantes por todos os lados, quadros antigos com cara de valiosos decorando as paredes, o luxo exaltava toda a glória e o poder de um reino antigo e uma família de nobres que ali vivera em um passado distante.
        Paramos em uma sala majestosa, exorbitante em sua magnificência, a sala do trono... havia uma cadeira grande em cima de um tablado, estofada de vermelho adornada de pedras preciosas de cor vermelha... rubis, a vidraça atrás lançava uma luz quase celestial derramando-se sobre o trono e as pedras vermelhas que brilhavam com a luz, inundando o salão com o brilho... nós paramos para observar.
-Fico me perguntando quem foi o último cara que se sentou ai. Disse olhando para Laurence, ele parecia melancólico fitando os vitrais atrás do trono pensativo.
-O mesmo que proporcionou a nós este lugar, um refúgio para nossos medos que deixamos no mundo lá fora... se este lugar não existisse nossas famílias e as pessoas que amamos estariam todos mortos.
-Ele é como nós também?. Perguntei sem nenhuma curiosidade evidente... porque alguém bancaria "o programa lobisomem"?
-Sim, ele é um de nós... nunca o conheci, ele não vem a Ilha, dizem que esse lugar e suas memórias são a raiz de seu sofrimento depois que saiu ele nunca mais voltou.
-Quando ele saiu?
-Há uma história envolvida... triste, não gosto de falar da dor dos outros me faz lembrar da minha.
-E qual é a sua história?. Perguntei, ele se virou para mim, amargo e infeliz.
-Antes de vir para cá... como todo mundo foi amaldiçoado a se transformar em uma criatura sombria, um demônio desprezível, eu também fui e acabei... não estando lá quando alguém que eu amava mais precisou de mim, minha esposa, eu não estava lá para salvá-la, e foi como se eu mesmo a tivesse matado... ela estava grávida quando aconteceu a transformação, eu não podia ficar perto e me isolei nas montanhas... quando fui mordido fiquei alguns dias com dores terríveis parecia que meus ossos estavam se partindo, quebrando como se alguma coisa quisesse sair de dentro de mim... ela ficou comigo o quanto pode, o quanto deixei que ficasse, ela não podia fazer nada para me ajudar e isso a entristecia, eu via sua dor e quando enfim o pior aconteceu eu tive que ir e ela ficou... sozinha.
-Sinto muito cara. Lamentei tocando seu ombro, ele ainda olhava os vitrais das imensas janelas perdido em suas lembranças, vê-lo recordar o passado me fez lembrar da única vida que conhecia antes de estar ali... quando era humano... usar o verbo no passado me fez pensar, se eu não era mais humano o que sobrou então? Um animal selvagem sem consciência que mataria qualquer coisa pela frente, pensar assim me dava calafrios.
-Às vezes quando paro nesse lugar e olho a luz do sol perpassar aquele vitral... posso imagina-la com nosso filho nos braços. Disse Laurence, sua dor era quase tangível, eu podia senti-la em cada palavra, a minha vida não era de longe tão fodida quanto a dele... ainda pensava na minha mãe, no quanto ela devia estar mal sozinha em casa esperando a companhia relapsa e fria do meu pai para consola-la, quanto ódio eu sentia de mim mesmo, dessa vida.
-Não posso nem imaginar como deve ter sido... eu...
-Tudo bem Matt... já não dói mais tanto assim com o tempo a dor diminui, não acaba mais fica... mais fácil de respirar... vamos, ainda temos muito o que andar. Disse ele partindo rapidamente e começamos uma descida pelas alas do castelo até chegar há uma cozinha gigantesca, ele explicava tudo enquanto passávamos por ela.
-Alguns alimentos nós produzimos por aqui mesmo... a floresta tem tudo o que precisamos como frutas e raízes fazemos incursões durante a tarde para coleta, mas trigo, arroz, feijão e todo o tipo de grão essas coisas produzidas em grande escala ou confecionadas como roupas e sapatos vem de fora, a comida é preparada a moda antiga pelo fogão a lenha. Disse ele apontando para a boca do que me parecia uma fornalha apagada... as pilhas de lenha ao lado.
-Os alimentos que vem de fora ficam estocados no celeiro perto do estábulo, e reposto na dispensa sempre que necessário, a dispensa fica naquela porta. Disse Laurence, eu assenti avaliando as grandes mesas redondas da madeira macia e estranha dispostas pelo salão da cozinha como um refeitório de um colégio... Laurence pegou uma maçã em uma cesta e a atirou para mim, era vermelha, bem vermelha, impressionantemente vermelha, a maçã mais vermelha que já vi na vida, sua casca tinha um brilho esmaltado, lisa e brilhante... eu a comi enquanto fazíamos a incursão, a maçã mais incrivelmente suculenta que já comi, Laurence me apresentou a orta onde cultivavam as verduras e os legumes livres de agrotóxico e também como a maçã impressionantes pela aparência suculenta e bastante viva e colorida e com tamanhos que eram maiores do que o natural como se aquela fosse a terra dos gigantes  como a história de João e o pé de feijão... as abóboras tinham o tamanho da roda de um jipe, algumas pessoas trabalhavam por ali.
-Fazemos a criação de bovinos, caprinos, suínos e de galinhas também. Disse ele apontando para mais além do vilarejo, ele me levou há um lugar que parecia um curral de uma fazenda com cercados onde porcos e ovelhas se encontravam separados, tinha uma leitoa com uma dúzia de salsichas rosadas cutucando suas mamas... o galinheiro ao fundo bem fechado, uma pequena criação de vacas no pasto verdejante, cinquenta cabeças no máximo.
-A que horas se levanta por aqui?
-Cinco... os trabalhos são divididos e alternados entre grupos e setores de modo que não atrapalhe o horário de ninguém e que os novatos tenham a companhia do mentor a todo momento... por exemplo amanhã ficamos responsáveis pelos animais no curral com o grupo A e nesse meio tempo os outros ficam responsáveis pelos outros setores como a limpeza do castelo, a orta, jardim, consertos e restauração, também prestamos serviços auxiliares como ajudar o cozinheiro na cozinha ou no reabastecimento de mantimentos vindos do lado de fora da passagem... aqui não existe serviço de menina e nem de menino, todos trabalham por todos, um ajuda o outro. Disse meu mentor enquanto ele falava nós seguimos de volta ao vilarejo e eu vi uma coisa que era para ter percebido por causa da extensão mas não tinha realmente percebido... nossa!
-Minha mãe ia adorar isso aqui. Falei parando para olhar, já deviam ser umas quatro horas da tarde, o entardecer era inevitável e a medida que a noite se aproximava o medo ficava mais forte, mais real... Laurence parou a meu lado para ver o que eu estava olhando, ele sorriu.
-O campo de rosas.
-Eu nunca vi algo assim em toda a minha vida... que lugar é esse?. Perguntei, colocando todo o peso de toda a confusão e fascínio que sentia em cada palavra... mas era bem mais do que isso, eu não era a pessoa mais descritiva do mundo, não conseguia por em palavras o quanto àquele lugar era... lindo, ainda que está palavra não dignifica-se, não lhe fizesse justiça... mas era lindo mesmo, queria dividir um pedaço daquele céu com Elie, minha mãe.
-Parece o paraíso não é?
-Não parece é cara. Disse admirando a beleza do lugar enaltecida pela luz do sol poente, não queria que a noite chegasse, queria que fosse para sempre dia, não queria que o sol se fosse.
-Não quero que a noite caia.
-Eu vou cuidar de você Matt. Prometou Laurence, eu sabia que ele estaria comigo o tempo todo, claro, mas... não conseguia me sentir aliviado com o fato, esse só foi o dia mais longo e cansativo da minha vida, um dia para ser esquecido... bom não completamente... era estranho mas uma parte desconhecida, descontrolada, desafiadora e até primitiva de mim não queria esquecer da garota... ela não era para mim, era inacessível, ainda mais por causa do babá-ca dela, o rei da bobolândia, o bobo da corte e ursinho de pelúcia Ted maldito.
-Ficamos soltos por aqui quando...
-Se você estiver sobre controle sim se não o recomendável seria encaminha-lo imediatamente para a contenção... a masmorra. Disse ele, está explicado por que ele disse no começo que isso aqui era o inferno, todos os monstros a solta.
-O hospital?
-Também serve como contenção... as paredes são grossas e é mais difícil de escapar.
-Acha que essa vai ser uma noite tranquila? Para mim?. Perguntei, merda! Eu não queria que a noite chegasse, será que não podemos girar o relógio no sentido anti-horário e impedir que a noite chegue? Eu não quero ver a lua outra vez... ela traz tudo a tona, todas às sombras malignas com que tenho lidado.
-Até a lua minguar... não, você ainda é novo... Rosemary disse que sua primeira transformação foi noite passada, ainda temos alguns dias até o primeiro ciclo fechar e recomeçar de novo.
-Eu não quero me transformar Laurence... odeio isso. Disse, ele bateu em minhas costas como uma forma de me consolar, eu olhava o sol sem óculos... que eu ficasse cego, não ligo.
-Se não deixarmos a mudança acontecer vai ser pior... seda-lo durante a viajem so adiou o inevitável e agora você precisa se transformar e aprender a sair da escuridão... olha quando a transformação ocorre você fica adormecido dentro de você mesmo é como dormir e não sonhar nada, você fica inconsciente mas quando conseguir achar a luz vai começar a se lembrar do caminho de volta, a ver porque estará consciente, acordado, mesmo com a metamorfose... você teve sorte de voltar ao normal depois da primeira noite, alguns não voltam ao normal, hibernam para sempre dentro de si mesmos.
-Como assim?. Perguntei sem entender, ele tocou meu ombro mais uma vez.
-Vamos até a praia... vou mostrar a você. Disse Laurence, eu o segui aterrorizado passando pelo vilarejo até a praia ouvindo meu coração saltar no peito... ouvindo de verdade.

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