29: Diário de bordo

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Allan Schneider

     Quando acordei zonzo de manhã para o café, rejeitei a comida e preferi uma xícara de café preto, subi ao convés, eu precisava urgentemente de ar fresco para me libertar da noite insone e ela estava lá, admirando o céu que clareava em silêncio, em contemplação.
-Como tem passado Allan?. Perguntou ela, eu olhei a linha do horizonte... onde quer que olhasse havia água e mais água... céu e mais céu... azul escuro no azul claro, o céu límpido e intocado como se a noite de ontem, a tempestade e os raios, o mar enlouquecido, como se o tempo ruim tivesse sido um pesadelo infeliz, eu não sabia exatamente como estava me sentindo, estava cansado e o cansaço ia além de ser só físico mas eu preferi dizer o que todo mundo diria, entrar em detalhes sobre o quanto eu estava abalado com tantas coisas nunca foi bom para mim... principalmente quando os sentimentos entram.
-Muito bem obrigado e você como está?. Perguntei, ela se virou para mim e nesse momento quase fiquei sem ar... aquele rosto não havia nascido para sofrimentos e tristezas, e isso a envelhecia de algum modo... a dor envelhece.
-Já estive pior. Disse ela, eu iria toca-la mas ela se retraiu e afastou-se de mim.
-R...
-Não... e eu dissesse que estou surpresa em vê-lo... mas não estou Allan, não sei ainda o que me causa quando olho para você e não quero experimentar mais do que isso. Disse ela, eu assenti olhando seu rosto puro e jovial, o tempo não a tinha tocado, não havia passado para ela.
-Você não mudou nada desde a última vez que nos vimos... é como se estivesse parada no tempo. Disse sem saber se o que sentia era pavor ou preocupação, alívio ou o amor sepultado ou ressuscitado, ela assentiu amarga.
-Você se foi... está escapando entre meus dedos a cada ano que passa e eu fiquei... e vou ficar para sempre. Disse ela, eu me encostei na borda-falsa, a proteção que impede que as pessoas e qualquer outra coisa caíam na água, um corrimão podemos chamar, encostado ao lado dela entendendo perfeitamente o que ela dizia, ela fica e eu vou, eu era um mortal e ela jamais conheceria o fim... uma parte de mim não compreendia como podia ser assim, achava triste que fosse assim... que um dia eu morreria e a perderia e a outra mais sensata temia o que a outra estava sentindo, ou talvez eu não quisesse aceitar a verdade diante dos meus olhos.
-Não é possível que seja você... fazem quarenta anos, você devia estar...
-Mais velha. Disse ela com amargura... ela me olhou.
-Eu sei que eu deveria envelhecer... é o natural, nascer e morrer mas eu não posso morrer Allan, quer seja ou não punição suficiente é o inferno onde vivo... estou amaldiçoada. Disse ela, eu recebi aquilo como um choque.
-Naquela época eu contei a você que eu era diferente e você não acreditou... acredita agora?. Perguntou ela, eu fiquei sem ar enquanto a olhava mas assenti... ela me olhou de modo avaliativo por um segundo e se desviou.
-Me surpreendo mais uma vez comigo mesma de constatar de que qualquer forma eu teria gostado de envelhecer ao seu lado... se isso fosse possível para mim mas você nunca sentiu mais do que eu esperava. Disse ela, eu a fitei, duas vezes mais surpreso.
-Eu me perguntava qual era meu problema porque não conseguia esquece-lo... porque simplesmente não poderia me apaixonar por alguém de minha espécie mas olhe como o meu coração foi teimoso por bastante tempo... se recusando a deixar você ir como se eu precisasse de mais algum motivo para saber que eu sou infeliz. Disse ela levantando-se do corrimão.
-Espere por favor. Pedi, ela parou.
-O que foi aquilo noite passada? O que fazia lá embaixo?. Perguntei, ela se virou o suficiente para que visse seu rosto de perfil.
-Está com medo de mim agora?. Perguntou ela, eu a olhei vacilante e ela sorriu com ternura.
-Era você...?
-Mantenha a porta fechada... vai dormir melhor assim. Aconselhou ela subindo as escadas e entrando na cabine do capitão... eu continuei ali parado até decidir o que faria a seguir... não tinha muito o que fazer em alto-mar além de me distrair com as anotações daquela conversa, repassando minhas aflições para o diário enquanto pensava no que escrever para minha próxima matéria, se é que teria alguma matéria, em toda minha vigilância para ver se conseguia uma imagem que fosse da criatura, ao que parecia onde David Black estivesse havia uma grande probabilidade de encontra-la como ouvi dizer por aí, mas não houve sinal de sua existência, tentei escrever... chegava a começar a primeira linha mas nada conseguia sair da minha cabeça cheia de olhares azuis caprichosos de uma moça que aparentemente tinha idade para ser minha filha ou pior... minha neta, então eu parei por aí.

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