67: Nas Sombras

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Completamente fodido, provavelmente enlouquecendo, uma causa definitivamente perdida.
Matthew Stanley


 


    Eu fiquei cego como um morcego a luz do Sol, por um segundo é como se não houvesse nada além de luz enquanto ela me guiava devagar pelo que me parecia uma calçada ou um pátio de pedras, não consegui perceber muitas coisas inicialmente além dos sons, dos cheiros, em minha visão apenas via contornos preenchidos pela luz, eu me senti perdido por estar cego e completamente confuso com meus outros sentidos disponíveis, era tanta coisa para assimilar, me sinto confuso.
-Agora eu sei como as pessoas que partem entram na luz. Falei, ela riu ao meu lado me guiando com um braço ao redor do meu.
-E como é?.
-Iluminado. Falei, ela riu de novo, não conseguia ver nada além de luz ardente de um dia quente como o inferno, eu comecei a transpirar de forma instantânea, querendo desesperadamente como um rato um lugar escuro para me esconder, até um bueiro servia... o sol que ardia em minha pele sugou a escuridão, as sombras como um aspirador de pó, eu me senti perdido desejando procurar a proteção de uma sombra fresca mas não me movi um centímetro para procurar, eu precisava daquilo.
-Se quiser parar podemos...
-Não eu quero continuar, eu preciso disso. Falei, e precisava mesmo a quanto tempo não tinha me sentindo assim... aquecido? Vivo? As lembranças do frio de antes, o próprio lugar frio que me puseram em confinamento, algo em mim queria fugir, talvez meu eu monstro não gostasse do conforto da luz do calor em si, era uma maneira de deixá-lo longe, a parte sombria de minha nova existência... que loucura.
-Está bem então. Concordou ela, o colírio ajudou enquanto me distraía com os sons a minha volta e a luz entrava em mim pude ver aos poucos, formas mais definidas de um pátio circular rodeado por uma construção... tentei olhar para cima, fiquei atordoado com o fogo curador de algo mais forte, a luz mais intensamente concentrada, eu estava encarando o sol... droga, não olhe para cima idiota!
-Isso é tipo uma colônia de férias é?. Perguntei enquanto minha audição captava sons distantes e atraentes, tentei identificar o que era sentindo o ar... mar, água salgada, areia molhada o som de risinhos e o cheiro... garotas, só podiam ser garotas, nenhum cheiro era melhor do que o delas a não ser por outra coisa a mais no ar vindo de um lugar atrás de mim, o som de panelas sendo manipuladas no fogo, o cheiro dominador de comida competia com o das garotas jogando vôlei na praia em algum lugar mais abaixo  de onde estávamos.
-Parece divertido?. Perguntou ela, eu tentei me focar no seu rosto.
-Eu respondo quando enxergar melhor. Falei andando para trás encostando-me em uma parede soube exatamente onde estava pelo frescor, uma sombra bem-vinda, ela riu.
-Está bem, leve o tempo que precisar mas gostaria que soubesse que todos aqui tem seus próprios problemas e buscam soluciona-los da melhor forma possível... mas nem por isso precisa ser uma experiência ruim Matt, aqui tem sido como um lar para alguns, um refúgio distante longe da opressão do mundo.
-Do que está falando?. Perguntei vivendo uma espécie de êxtase confuso, inebriado pelas sensações do clima litorâneo daquele lugar... nunca pensei que um dia pudesse chegar a sentir assim, ouvir coisas impercetíveis como um som pulsante e molhado, batendo contra paredes úmidas em um ritmo... sem perceber eu me aproximei mais do som.
-O que está fazendo?. Perguntou ela, depois eu percebi o que estava fazendo... minha cabeça grudada contra seu peito, inspirei enquanto sentia e ouvia seduzido... era seu coração, molhado e quente batendo na caixa torácica como um tambor na chuva, caramba, eu estava ouvindo seu coração e não era só isso, as veias pulsantes contra meu rosto conduzindo o sangue pelos vasos sanguíneos... que loucura.
-Isso é incrível. Sussurrei afastando-me dela distraído com outro som da água e de outra coisa no meio de uma algazarra de pombos no pátio... um som mais rápido de um farfalhar macio de penas... eu me concentrei nele, a velocidade de batidas de asas reduzindo, asas pequenas e leves... um pássaro, a julgar pela velocidade do bater suave de suas asas, cinquenta, sessenta vezes por segundo, um colibri passou zunindo por mim, eu o observei passar meio cegueta... não imaginava que era possível, que existia aquele tipo de coisa, ouvi Rô dar um pigarro baixo.
-Bom... prosseguindo quero dizer que... como eu disse antes só depende de você que esse lugar seja uma experiência boa ou ruim... é o que a maioria tenta fazer por aqui, colabore e se sairá bem. Disse ela, eu procurei me concentrar no chão de pedras enquanto a ouvia, parecia uma boa forma de começar a enxergar de novo, do início, nada de tentar encarar o sol outra vez como um idiota, eu estava progredindo bastante... quase podia enxergar direito um canteiro de peônias cor de rosa ao redor de uma fonte redonda no meio do pátio, um chafariz... tinha alguma coisa azul e branca se movendo na água, vários peixes, uns cinco ou talvez quatro pelo som que eles faziam na água mas não me aproximei da fonte banhada pelo sol em vez disso voltei a me concentrar na conversa de costas contra a parede fria na sombra encostando a cabeça em um murro ou nas paredes de uma casa bem grande ainda não consegui definir direito... minha breve existência em uma vida que eu mal conhecia ou se quer entendia se resumia um metro cúbico.
-Só isso? Onde estão os folhetos explicativos sobre como ser um bom lobisomem?. Zombei, ela ignorou o deboche continuando o que estava dizendo.
-Há momentos que podem ser complicados de lidar, todos passamos por momentos difíceis mas nem sempre precisa ser assim se parar para ouvir... tenho certeza de que não vai achar tão ruim assim. Disse ela, eu balancei a cabeça atordoado e ainda meio confuso parando para ouvir outra vez os sons a minha volta... brincadeiras, risos adolescentes se misturavam ao som distante da natureza, era isso que ela queria dizer? Acampamento Camp-Rock três? Eu tenho uma péssima notícia não vão gravar mais nenhum filme porque o sonho de uma vida acabou, os atores não são mais eles mesmos... eu não sou mais eu mesmo, ninguém normal consegue ouvir o roçar macio dos lábios de uma garota enquanto ela está falando.
-Eles estão se divertindo você quer dizer?. Perguntei, ouvi seu riso profundo produzido pelo atrito das cordas vocais em sua garganta ao meu lado.
-Inacreditável? Improvável? Impossível? Não é tão complicado assim de entender... eles só escolheram a luz e não as sombras, uma maneira de viver sem o privilégio da escolha, se adequar as circunstâncias para enfrentar a tempestade, não há outra maneira de vencer sem enfrentar. Disse ela, então tudo se resumia basicamente a isso, aceitação... era cedo demais para isso, mas não teria mais como voltar no tempo, no momento exato em que às coisas acabaram para mim... eu não estou morto mas bem fodido.
-Seu amigo disse que... por ser o que sou agora tenho que ficar longe de seres humanos, estou no lugar certo?. Perguntei ouvindo o som borbulhante das ondas quebrando, uma bola cair no solo arenoso.
-Todos os habitantes da Ilha são como nós, como eu e você Matt... somos licantropos, ou lobisomens como popularmente é conhecido somos ligados pelas sombras da noite, pela luz da lua cheia é nossa sina, uma maldição... condenados a metamorfose durante às noites de luar embora com o tempo isso não dure, não é para sempre... em uma certa idade quando adquirir o pleno domínio sobre si mesmo poderá escolher se transformar quando quiser, isso torna tudo mais simples até porque ninguém gosta de fazer nada contra a vontade mas por enquanto sua vontade será subjugada por algo maior e mais forte, a maldição. Esclareceu ela, eu fechei os olhos para receber aquilo... Monstros S/A... patético mas não era um filme infantil, eu estava no mundo dos monstros, não sabia como foi que consegui aceitar aquilo numa boa sem questionar mas acho que desde aquele dia enquanto corria pela cidade preocupado com minha vida normal, real e aceitável quando eu sabia quem eu era e o que era, um humano apenas quando fui atacado tudo mudou... naquele instante meio que soube que as coisas mudariam de modo drástico, radical e angustiante... eu não sou mais humano, o que eu queria na verdade era ouvir uma coisa diferente, que não fosse que minha vida era anormal, irreal e inaceitável... fodida.
-Todos... todos eles são como eu?. Perguntei, senti uma mão delicada em meu ombro.
-Sim Matt todos.
-E o que eles fazem aqui passam o dia todo fingindo que nada está acontecendo?. Perguntei minha voz saiu áspera e em um tom rude, nada educado... sabia que ela não tinha culpa por eu estar ali mas eu não sabia mais como reagir, simplesmente aceitar sem lutar parecia inconcebível como se eu estivesse entregando o jogo como se tivesse morrido, mortos não podem lutar nem viver mais mas eu tinha outra opção?... ela não pareceu se importar com minha revolta.
-Existe uma grade de atividades... para os que ainda estudam as aulas são ministradas na parte da manhã até o horário de almoço como em qualquer rede de ensino, não vai perder nenhum ano de estudos e durante a tarde são oferecidas diversas outras atividades umas opcionais e outras obrigatórias e também depende do seu nível de temperamento para suportar.
-Quais são as obrigatórias?
-Seu mentor vai explicar a você. Disse ela, eu assenti e depois pisquei.
-Mentor?
-É como se fosse um guia... ele vai aconselha-lo da melhor forma possível.
-Todos precisam disso? É realmente necessário?. Perguntei, parecia um saco, argh! Babá?!
-Quando você souber se virar sozinho não será mais necessário... você ainda é muito novo Matt não sabe ainda até onde pode ir, você viu o que aconteceu mais cedo com o outro garoto... se faz obrigatório supervisão de alguém mais velho, experiente e qualificado, o mentor tem a responsabilidade de cuidar de você e de para-lo quando for necessário... não viu o que aconteceu lá dentro? O outro garoto o atacou sem pensar é para sua segurança e para a dos outros que vivem aqui também é outra coisa obrigatória, é protocolo.
-Ele vai ficar no meu pé o tempo todo?
-Sim.
-Porque?. Perguntei como uma criança revoltada, agindo infantilmente.
-Você pode se machucar se não estiver controlado ou pode machucar outras pessoas a sua volta... já tivemos incidentes como esse no passado e isso não vai se repetir.
-Que tipo de incidentes?
-Do tipo que se faz necessário a presença de uma pessoa que possa intervir. Disse ela, me perguntei porque ela não queria falar sobre o assunto mas deixei passar... a cegueira cedeu e então era seguro erguer os olhos do chão só não podia me arriscar a encarar o sol de novo como um retardado... olhei ao redor era mesmo um pátio, as flores vivas do canteiro circular, as borboletas multicoloridas pousando em suas pétalas macias buscando néctar, olhei para trás de mim, os blocos de pedras de uma parede a qual me encostara antes, a porta de ferro antiga com desenhos trabalhados no ferro por onde tínhamos saído parecia... medieval.
-Nunca vi um hospital com uma porta dessas. Falei, ela ainda estava encostada no mesmo lugar.
-Reformamos os andares inferiores para isso. Disse ela enquanto procurava as janelas daquela construção que não parecia ter fim enquanto esticava o pescoço para olhar para cima e me afastei mais das sombras de uma construção colossal, as torres pontiagudas com bandeiras vermelhas penduradas com o símbolo de um leão dourado sobre duas patas rugindo... puta merda...
-Isso é um castelo?.
-Sim é sim.
-Cara isso é... sensacional. Disse admirando as torres na sombra sem fim de uma torre que cobria parte do pátio  enquanto recuava eu esbarrei em alguém... uma garota que estava correndo dali, os olhos vermelhos... um cara apareceu ao lado dela pegando seu braço... quase fui para o chão com o encontrão mas terminei com as mãos no piso grosso de pedras observando os dois, ele arrogante e rude e ela assustada, eu não gostei da maneira como ele a segurava, isso me fez contrair a mandíbula, eu me levantei devagar analisando o cara, ele olhou para mim e ficou imóvel, tenso de repente quando se deu conta da minha presença soltando o braço dela para me encarar de frente.
-Ai garoto olha por onde anda ou pode se machucar novato. Disse o cara alto e forte mas não era Laurence, não sei bem se eu gostei muito da maneira enojada e superior como ele disse, ele parecia um daqueles tipos encrenqueiros, estava acompanhado pela loura bonita que parecia estar muito pouco a vontade, como se estivesse obrigada a estar ali... mais quatro caras estavam com ele, igualmente fortes e me encaravam de cima, sentia cheiro de briga vindo deles, ergui o queixo também encarando rigidamente...
       Olhei a garota, mesmo nas sombras da torre seus cabelos longos irradiavam dourados como o sol, os olhos verdes... o perfume que vinha dela, natural e surpreendentemente atraente, não consegui identificar o que era, agridoce... não pertencia a fragrância de nenhuma flor específica que já tivera sentindo antes, uma flor diferente exótica e luxuriante, assim que meus olhos encontram-se com os seus verdes esmeralda brilharam intensamente.
-Desculpe eu não vi você. Falei a ela que assentiu abaixando os olhos quando o cara ao seu lado lançou um olhar zangado para ela.
-Talvez enxergasse se não ficasse olhando para cima feito um imbecil seu filho da mãe, merdinha. Disse ele, sua mão voando até mim para me empurrar... eu a segurei antes que tocasse em mim e a soltei um segundo depois, seus olhos brilharam excitados para uma briga, umedecendo o lábio inferior ele queria que eu dissesse algo, que eu o enfrentasse mas eu só conseguia pensar na garota a seu lado... eu não sabia ainda ao certo se era isso que eu queria... brigar, mas minhas mãos si fecharam em punhos mesmo assim.
-Senhor Mike Wilkins-Hill cumprimente seu novo amigo senhor Stanley. Disse Rô, eu me virei e ela se aproximou de nós... a expressão fria e severa o tal Wilkins-Hill se afastou de mim quase um reflexo quando a viu... os olhos nela, parecia ter receio até medo dela... Ui.
-Cuidado Ted... não sei se aprecio este tipo de linguajar, tem que melhorar mais a maneira como trata as pessoas e acho que está na hora de sua aula se não me engano. Disse ela, Rô o chamou de que? Ted? O apelido dele era Ted? Fala sério... nome de ursinho de pelúcia que meigo.
-Sim senhora. Disse Mike Wilkins-Hill o abominável homem das cavernas mas também conhecido por Ted o ursinho fofo... não tinha palavras para explicar o quanto eu me sentia deliciado por observar Ted "ursinho de pelúcia" levar uma bronca de Rosemary, me senti particularmente satisfeito com isso, tem medinho dela Ted?
-Ando ouvindo muitas coisas a seu respeito e nenhuma delas me parece agradável de se ouvir, o senhor não está tendo bons resultados senhor Wilkins-Hill... não acha que deveria se esforçar mais? Gostaria de passar mais tempo conosco?. Perguntou Rosemary a ele, Ted não disse nada, os outros quatro amiguinhos dele saíram em debandada abandonando-o, a garota ainda continuava ali tentando não olhar para nenhum de nós três, eu sorri quando ela enfim me olhou, observei um canto de sua boca se erguer involuntariamente, e depois ela virou o rosto, as bochechas assumindo um tom rosado... ela era perfeita.
-Então sugiro que comece imediatamente Ted. Disse Rô secamente, ele saiu sem dizer nada puxando a garota consigo, ela já está indo embora? Porque? E porque com o Shrek? Olhei Rosemary apagando a decepção da minha mente.
-Ele tem medo de você. Falei, ela me olhou e sorriu.
-Se você se lembra-se... também teria Matt. Disse ela, eu engoli em seco e ela sorriu mais ainda.
-O que... faço agora? Acho que deveria... ir para a aula também. Suspirei olhando o imponente castelo, a movimentação atrás de suas paredes... começar mais um primeiro novo dia de aula, que terrível, destino cruel.
-Hoje apenas relaxe suas aulas começarão amanhã não se preocupe.
-E quem vai ser meu mentor?. Perguntei alerta, e se fosse aquele babaca? A coisa ia feder legal.
-Você o conhece... é o Laurence, ele irá lhe mostrar o lugar, aproveite o passeio instrutivo senhor Stanley... Laurence poderá lhe explicar o princípio da instituição e seus fundamentos e também tudo que precisar saber... boa sorte Matt e seja bem-vindo. Disse ela me deixando sozinho, enquanto eu pensava no Raio do Sol, quem era aquela garota?
       Ah não, essa não Matt, o que isso importa afinal? Você já está ferrado quer se ferrar ainda mais? Pensei ter amado Sara no passado, ela partiu meu coração e depois veio Bella claramente nem um pouco a fim de mim mas eu completamente caidinho por aquele par de olhos azuis arrebatadores e agora fascinado por uma garota totalmente diferente das outras duas e estranha para mim mas nem por isso menos interessante... porque eu gostava de complicar minha vida? Ah Matt, Matt, Matt você é uma causa perdida mesmo, teria dito a minha mãe.

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