41: Diário de bordo

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Allan Schneider

       A vida era mesmo tão frágil quanto era curta, repleta de seus próprios mistérios, suas complicações, seus problemas e tudo mais que envolve sem qualquer pausa, dando voltas e mais voltas sem fim, sem limites de quilometragem... e de repente eu tinha voltado no tempo, desde o princípio lá atrás, mas o que eu encontrei quando abri meus olhos não foi o passado, era o presente, eu já não era mais um exemplo de vivacidade e saúde perfeita mas meus olhos cansados me permitiram olhar para dentro de mim havia algo que se agitava lá no fundo que permaceu adormecido durante décadas... abrir a caixa das lembranças e reviver tudo outra vez me causava agonia... eu nunca fiquei realmente tão parado no universo, fixado ao solo mas era como muitas vezes antes havia me sentido assim, eu não estava me mexendo, deixei que o tempo passasse e que minha mente continuasse o seu constante e interminável ritmo sem ouvir mais nada além da razão... e isso era patético para quem acreditava em bruxas e fantasmas e tudo o mais mas era verdade, eu era meio acreditado e ao mesmo tempo lúcido e sensato, algumas coisas eram mais fáceis de engolir do que outras, comigo era assim, não parei um único segundo faz quarenta anos para sentir o que o meu coração sente, me preocupava mais em achar provas no que via e ouvia, dedicado inteiramente à tudo e nada a um só tempo...
     Por certo, ver aqueles corpos me fez pensar no quanto tudo era tão breve e débil, de um momento para o outro eu estava velho, tinha envelhecido e continuaria a envelhecer até que meu corpo morresse.
     Assustado, eu percebi que vivi esse tempo todo e não vivi realmente apenas estive deixando que me minha obsessão pelo trabalho me levasse até ali, neste instante, onde estou?... o que tinha feito da minha vida...?
-O que houve Allan?. Perguntou ela, eu me virei e Rose estava ali de pé... ainda me afligia olhar para ela, seu rosto lindo e inquietante... os anos se passaram e isso não tinha passado, talvez nem nunca passaria...
-Como está o garoto? Matt não é?. Perguntei virando-me para ela, Rosemary assentiu e sorriu.
-Ele está bem agora... e você como está?. Perguntou, eu suspirei e me encostei na borda-falsa olhando o céu.
-Depois da morte dos meus pais, eu fui morar com meus tios em Louisiana, meu tio Luigi... ele tinha uma livraria, ele dizia que aquele lugar era seu segundo amor... minha tia morria de ciúmes quando ele falava isso na frente dela. Contei irrompendo pelas ondas de volta a costa esquecida do passado, ela riu ficando a meu lado, com aquele sorrisinho apertado nos lábios.
-Quando chegava da escola era o primeiro lugar para onde ia, passava horas lendo com meu tio na secção de ficção científica e comendo biscoitos que a tia Lupi fazia... nós dois amávamos aquilo, era o melhor lugar do mundo para mim... eu cresci entre os livros de escritores excepcionais inebriado pelos mudos e aventuras de suas histórias pensando que um dia escreveria algo tão bom quanto qualquer um deles escreveu e quando conheci Caroline... minha vida estava completa de novo, e eu estava feliz... mas depois de sua morte. Balencei a cabeça em descrença, decepcionado comigo mesmo e com a forma com que tive que lidar com isso... amar e esquecer não foram um problema para mim, vinha fazendo isso desde a morte dos meus pais... amar e esquecer... como se as coisas pudessem ficar melhores dando as costas para tudo.
-Eu a vi morrer enquanto um demônio se alimentava dela, depois que ela se foi... passei anos tentando provar o que tinha visto com meus próprios olhos, mas ninguém acreditou em mim, pensavam que eu estava louco, fui culpado por sua morte e depois decidi me afastar... jurei que algum dia provaria minha inocência mas estou longe demais do dia em que isso possa acontecer... que enfim as cortinas possam cair e que todos possam ver como eu vi. Falei, ela e eu ficamos em silêncio... eu o especialista em pisar na bola, ou fugir dela e ela... olhar para ela me fez perceber o insucesso e grande estupidez de ter ido embora.
-Mas agora não sei se isso importa mais, em todo o caso... é melhor desistir disso também.
-O que está dizendo? Vai se aposentar?. Perguntou, ela parecia incrédula, eu ri.
-Não se pode desistir de uma causa que não lhe pertence... eu lutei durante anos mas de nada adiantou... ninguém pode acreditar no que não vê... e eu aprecio sua ignorância neste ponto... ninguém iria querer viver assustado.
-Desistir não leva ninguém a nada... vai jogar mesmo todos os anos de trabalho e esforços no lixo? Tudo por que lutou?... tudo em que acreditou? Então é isso? Acabou? Simples assim?. Perguntou ela, sua indignação me surpreendeu.
-Pensava que fosse isso que quisesse que eu tivesse feito desde o começo, o que... poderia ter sido se eu tivesse dito adeus?. Perguntei, ela me olhou com impaciência.
-Eu o teria convencido a deixar de ser idiota e que ficasse mas isso era o que eu queria e você nunca faz o que eu quero... o que importa é o que você queria. Disse ela, eu suspirei.
-Você está irritada.
-Claro que estou irritada. Disse ela consternada.
-Isso não importa mais.
-Allan eu não me apaixonei por você a toa... eu não me apaixonei pelo nerd com transtorno obsessivo compulsivo, vidrado em quadrinhos e em histórias fantásticas sem cabimento algum... por favor não manche a imagem super sexy que eu tenho de você escovando os dentes de meias com o roupão do pica-pau, não seja o medroso que se esconde e foge dessa maneira... onde está sua confiança? Sua fé?. Perguntou ela, eu toquei seu rosto com uma centelha de esperança.
-As coisas não vão continuar como estão para sempre... um dia haverá um momento em que a humanidade se verá obrigada a acreditar... afinal de contas o mal existe e a cada instante que passa seus peões são movidos... só não podemos deixar nosso rei cair é o mesmo que a esperança e todas as outras coisas importantes pelo que viveu até  agora... é isso que tenho feito. Disse ela, como parecia ser tão fácil vindo dela.
-E o que você vai fazer agora?. Perguntei regressando ao tempo real, eu sabia que um de nós dois veria o outro partir mas não sabia por quanto tempo mais... eu não duraria mais quarenta anos, era a única certeza que tinha.
-Senhora o Capitão Black mandou avisar que estamos perto da passagem... o Sentinela foi avistado. Disse Martin, ela se afastou com educação e sorriu.
-E Allan acho que deveria pegar sua câmera agora. Disse Martin me passando o equipamento fotográfico, eu o olhei sem entender enquanto a olhava.
-Eu reconheço minha derrota Martin... sei quando é hora de desistir, e infelizmente não vai ser dessa vez que eu vou conseguir uma imagem do...
-Allan está olhando para o lado errado. Disse ela pegando meu queixo e virando para o mar... foi quando o vi dar um salto para fora d'água, algo inusitado de se ver como as baleias faziam... indubitavelmente era uma cena inusitada, eu me aproximei mais vendo aquilo se atirar na superfície como se quisesse ficar por cima da água.
-Não posso acreditar. Sussurrei abalado.
-Existe uma espécie de peixe que só vive nas proximidades da Ilha, é o favorito dele... o chamamos de o Sentinela porque ele guarda a passagem para a baía... quando o vimos sabemos onde devemos entrar e por onde devemos seguir. Disse Rose, enquanto via assombrado o dia virar noite... o mar aberto desaparecer e um nevoeiro e as formas de rochedos pontiagudos surgirem em seu lugar percebi abalado com a aquela mudança de paisagem que... podíamos bater, naufragar e morrer se batesse naquelas rochas, vi esqueletos de navios e aeronaves antigas da época da segunda guerra mundial... eu queria gritar para que retornassem mas estava chocado demais.
-Não se preocupe o capitão tem olhos de águia... ele consegue ver por onde estamos indo seguindo nosso amiguinho. Disse Martin, a neblina fantasmagórica engolia o navio.
-Muitas das embarcações que se perdem, desaparecem do mapa... é porque tentaram atravessar o portal mas não conseguiram retornar depois, a entrada é um ponto cego, invisível que muda de lugar constantemente... nenhum humano poderia acha-lo mas um animal pré-histórico faminto pode... ele entra e sai da zona fantasma quando bem entende e é somente dessa forma que podemos achar a passagem... as bússolas e os radares, os melhores equipamentos de localização de ponta se confundem quando estamos perto... só o grandão pode dizer precisamente por onde temos que entrar. Disse Martin, enquanto ouvia o canto... um canto parecido com o das baleias mas não era uma baleia que fazia aquilo quando consegui reagir e pegar a câmera, andei para a frente, eles me seguiram.
-Isso é inacreditável!. Falei enquanto tentava ver com a câmera, mas a neblina era densa, intransponível... mas eu deixei a câmera a postos quando percebi...
-Mas o que...
-Aqui não pega sinal... tecnologia alguma funciona aqui Allan. Disse Martin, a câmera tinha desligado sozinha... sem bateria mas eu podia jurar que ela estava carregada...
-Mas que lugar é esse?. Perguntei olhando Rose... sua expressão era de alguém que acabara de voltar para casa.
-Ainda não percebeu? Não tem sinal... as embarcações afundam e somem. Disse Martin, eu só balancei a cabeça.
-É como o triângulo das bermudas Allan. Disse ele, eu estava respirando e minha respiração saia em lufadas brancas do ar quente misturando ao ar frio daquele lugar atemporal.
-O nevoeiro é passageiro, é como uma camuflagem natural para esconder o acesso até as ilhas nem me pergunte como ela surgiu... veja só, chegamos. Disse Martin, eu assenti olhando tudo a minha volta transmutar de novo e virar um paraíso... as águas mais azuis, os corais mais vívidos que já vira, o verde mais verde do arquipélago composto por três ilhas, a areia mais branca parecia neve ao toque dos raios solares, parecia fantástico... todo aquele lugar parecia muito mais do que já havia visto e dito que era a mais pura beleza em minha vida, chegava a ser surreal...
-A partir daqui não podemos mais seguir em frente.
-Mas porque?. Perguntei quase desolado com o anúncio, me virei para Martin mas ele se afastou e ela estava ali em silêncio fitando-me com aqueles olhos belos e preciosos.
-Receio que serei eu que terei de partir agora. Anunciou ela, de repente o momento magnificamente colorido ficou cinza.
-Mas isso não é um adeus Allan não se preocupe... vamos nos ver novamente se quiser é claro.
-Mas porque Rosemary?
-Já esqueceu-se do susto desta noite? Há um motivo para que eu traga o garoto para cá... existem outros iguais ou piores do que ele naquela Ilha. Disse ela olhando a Ilha maior a frente e depois ela olhou em meus olhos.
-E eu não vou convidá-lo para a morte... já foi o bastante o que viu até agora.
-Quanto tempo vai ficar?
-O quanto ele precisar de mim. Disse ela, olhei as águas calmas e a balsa que vinha.
-Lamento que não tenha conseguido uma foto. Disse ela olhando a câmera.
-Eu posso sobreviver, não é o fim do mundo.
-Já dizer adeus por outro lado. Falou ela enquanto avaliava minha expressão, ela sorriu e deu um passo para trás.
-Até logo Allan. Disse ela virando-se de costas para mim.
-Espere. Pedi, ela se virou calmamente.
-Até logo. Disse Rose selando a promessa em meus lábios, seu olhar quando ela se afastou também prometia o mesmo... eu só queria estar perto dela e algum dia, gostava de pensar que em breve ela voltaria.
-Eu não vou demorar. Disse ela em despedida, olhei a ilha paradisíaca depois que ela se foi, o monstro surgindo na superfície da água azul próximo aos corais, ele estava se investindo contra uma imensa mancha escura que se dispersava na água... um cardume... de uma espécie de peixe desconhecida, tentei identificar o que era, eram tantos alguns saltitantes pulando para fora d'água enquanto o monstro os perseguia o capitão se aproximou de mim nesse momento.
-É um animal pré-histórico magnífico... na primeira guerra mundial fui responsável por encaminhar meu regimento a frente de guerra, eles ingressariam pela costa... mas não podemos chegar perto o suficiente... fomos interceptados e alvejados pela esquadra inimiga, eu afundei com meu navio, estava a deriva quando fui socorrido por alguma espécie de criatura marinha, me agarrei a seu longo pescoço quando ela chegou a este canal, é um portal... é onde ela vive degustando seus peixes favoritos.
-E depois?
-Me lembro de acordar em uma praia de areia branca naquela ilha. Disse ele indicando uma Ilha de floresta densa bastante escura ao leste.
-E o que tem lá?
-Silêncio. Disse o capitão, olhei sua expressão sombria, vi os peixes saltarem próximo ao barco... eram azuis, um tom um pouco mais escuro que a cor da água.
-Que peixe é esse?
-É uma espécie de carpa.
-Quando iremos partir?. Perguntei olhando a balsa chegar ao píer, eles desembarcaram, o garoto, Matt coberto com um cobertor denso... outras pessoas se aproximavam da praia saindo de entre as árvores.
-O mais breve o possível. Disse o capitão afastando-se a passos lentos fitando a Ilha ao Leste com algo em sua expressão que me parecia... medo?

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