43: Demétrius

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Anjos da meia-noite








-Até quando vamos continuar com essa farsa?. Perguntou Válber atirando mais pedras dentro do saco que seria atirado ao canal, ele era um homem alto e negro vestindo uma capa escura, o cabelo era uma mancha branca na cabeça, os olhos acinzentados sem brilho, opacos, ao seu lado Demétrius olhava a lua refletir na água escura em silêncio contemplando a cidade adormecida.
-Até quando for necessário.
-Essas mortes são inúteis para nós, essa busca é inútil. Contestou Válber inexpressivo... claro que era inútil, pensou Demétrius, até mesmo ele estava cansado de toda a hipocrisia mas a farsa era necessária assim como a mentira para servir a um propósito maior, ele não era a peça-chave no jogo mas era um peão importante e tinha orgulho de ver as coisas dessa forma... embora estivesse enganado, não passava de mais um peão insignificante a ser jogado de um lado a outra na frente de batalha, Demétrius atendia a dois mestres, era um missionário, um executor de missões incumbidas por eles assim como Válber e muitos outros, qualquer coisa, não importava o que fosse, até matar... algo que ele fazia por simples prazer, isento de remorsos... mas ele faria o que lhe pedissem porque acreditava em sua lealdade.
        Um servo como ele que servia com tamanha devoção, podia sentir de verdade, ou quase sentir de verdade qualquer emoção pelo menos era nisso que acreditava... não queria ser obrigado a isso, mentir, mas não via outra alternativa... o mal possuía duas faces naquele jogo traiçoeiro e ele não se importava em trabalhar para os dois lados ainda que estivesse brincando com fogo... não se incomodava, mesmo assim havia certa tristeza na forma como as coisas prosseguiam, pai e filho deveriam estar juntos, era algo que lhe traria imensa satisfação... mas infelizmente as coisas não eram assim, ele esperava que seu Mestre caísse em si e finalmente apoiasse o filho, isso quase lhe provocou um sentimento peçonhento e amargo que os humanos bem conhecem como arrependimento, mas era algo superficial e não tão profundo quanto a lealdade a seus amos, acreditava veementemente nisso, era lealdade e não traição para uma criatura que não podia sentir um resquício de culpa, não era algo a ser questionado.
       Mesmo agora era tarde demais para desistir e voltar atrás mesmo que quisesse, Demétrius apoiará os dois incondicionalmente, mesmo que no fim das contas tenha de escolher um lado, um que lhe desse chance de sobrevivência e que fosse aprazível... não havia espaço para arrependimentos tardios, mesmo que os sentisse de verdade... haveria o que lamentar se ele fosse uma pessoa comum, se seu senhor descobrisse a verdade por trás de suas mentiras, traição era algo mais forte a sentir, algo que no cerne de sua alma sombria colocava a prova sua lealdade... ele balançou a cabeça quase chegando a sentir algo parecido com desgosto, claro que era leal, pensou, desde o início de sua existência comprometera-se a servir a seu amo, algo perto de admiração por todo seu vasto poder ainda que ganância e inveja podiam ser as respostas exatas que seus olhos cobiçosos enxergaram a muito tempo, a fome pelo poder e riqueza insaciáveis que sentira em uma existência miserável de a muito tempo o levaram conhecer seu atual mestre quando a ganância o levou a um caminho muito distante daquele que tomara a tanto tempo enquanto seguia os passos de um homem como seu discípulo, ele também o chamava de "Mestre" e assistiu a sua morte, mesmo depois do que fez o bondoso Mestre o perdoou por traí-lo...
       Entretanto seu novo Mestre jamais o perdoaria se descobrisse, ele não conhecia misericórdia.
       Não se orgulhava de trair seu Mestre, depois de tanto tempo servindo-o, mas sua traição era justificável... a fraqueza de seu Mestre o fez refletir sobre suas alianças, sua fidelidade impecável até então... há séculos era assim, ele caminhou sobre a terra fazendo a vontade de seu Mestre, percorrendo os vales e as planícies das metrópoles humanas a procura da Escolhida, o ponto fraco de seu senhor, uma mulher humana, frágil e patética... ele não entendia porque seu senhor a adorava mas o motivo de sua adoração pela mortal se tornou irrelevante quando ele ordenou a missão... uma busca insensata e infrutífera pois ela até então jazia no reino dos mortos, mas as coisas mudaram quando o amo recebera a visita de sábio mal vestido anunciando seu regresso, após um período de ausência muito longo ela voltou exatamente como fora profetizado, mas em sua ausência, cinco séculos se sucederam em que Demétrius via a agonia crescente de seu Mestre, a espera e a decepção ao longo dos anos, a espera por uma mortal, isso lhe causava revolta...
        Demétrius se virou para olhar o rosto da moça que jazia livída no chão de concreto abaixo da ponte com desprezo, os missionários a haviam raptado, não era a Escolhida, nem todos se lembravam dela mas Demétrius esteve perto da última vez, sabia exatamente como ela era... a jovem ali embora muitas de suas características lembrassem a Escolhida, não era ela. Desde que a profecia fora lançada garantindo seu regresso seu Mestre ordenou uma busca incansável atrás da Escolhida. Em todos esses anos Demétrius jamais se arrependeu de ter tirado a vida daquela que o coração de seu Mestre almejava, achou que seria melhor afasta-la dele, ele viu o que acontecia com seu senhor sobre o seu feitiço, temia que a bondade dela o corrompe-se agora que estavam tão perto...
        Só mais um pouco... repetia Demétrius para si mesmo. Ele tinha esperança de que seu Mestre abandonasse essa ilusão e se juntasse a eles no momento de glória no final do jogo, entretanto ela tinha que ressurgir dos mortos para estragar seus planos, voltou quando deveria ter continuado morta, ela tinha que voltar para estragar tudo outra vez... pensava ele, o cenho franzido para a escuridão do horizonte, um desejo ferrenho o envolvia... como queria matá-la outra vez... mas alegrava-se em matar as outras que trazia ao seu Mestre, o "profeta" não fora tão específico quanto a forma física da Escolhida em sua visita inesperada mas garantiu ao Mestre que seu espírito era o mesmo, dezenas de garotas como aquela foram trazidas de diversas partes do mundo para serem levadas ao seu senhor e rejeitadas por ele no momento em que descobria que não era ela... isso tornava a mentira mais fácil, enquanto o Mestre acreditasse que ela continuava morta mais tempo havia, era tudo de que precisava, tempo... para que seu segundo Mestre fosse enfim libertado de seu cárcere.
-É o nosso dever servir as vontades do Mestre. Disse Demétrius a Válber que estava farto de continuar jogando esses joguinhos perigosos esperando que toda a ira do diabo não se voltasse contra eles, porém além disso sabia que ele continuaria com a farsa até tudo estar em ordem e a cerimônia de libertação fosse concluída... porque a Escolhida era a chave.
-Porque estamos fazendo isso se sabemos que não vai dar em nada?... você e eu sabemos que ela não está aqui. Disse Válber apático cobrindo o rosto da jovem de cabelos escuros, o rosto lívido e belo tão pálido quanto a lua... colocou o saco sobre o ombro.
-Porque ele não sabe que ela está viva, porque ele não sabe onde ela está agora e se nossos planos continuarem como o previsto ele não irá encontrar-la, pelo menos não ainda.
-E se ele descobrir a verdade?
-Não vai. Disse Demétrius convicto, certo demais de si para que se preocupasse.
       Mas excesso de confiança seria presunção, era como pisar em ovos... exigia cuidado. Se o Mestre descobrisse a verdade ele seria castigado com sua morte definitiva.
-Ele vai nos queimar vivos... a todos nós, não poupará a ninguém quando descobrir que estamos o enganando, que há garota está viva e que você a matou no passado seu fim será bem pior que o meu, vamos todos virar cinzas se seu plano fabuloso for um desastre Demétrius mas pelo menos eu não terei um fim tão terrível quanto o seu. Disse Válber, a voz sem qualquer temor, fria e insensível como se não o afeta-se em nada era assim para sua espécie, não havia emoção, sem sombra de qualquer sentimento em seu ser, eles não podiam sentir de verdade qualquer coisa, nada, absolutamente frios e insensíveis, assassinos perfeitos... Válber saltou da ponte para longe de Demétrius e sua insanidade... eles não eram humanos, eram criaturas surgidas das sombras mais profundas dos mistérios que assolam a humanidade, alguns chamariam de demônios se conhecessem a real verdade por trás de suas faces sem expressão, eram vampiros.
        Outro ser misterioso que aguardava nas sombras e ouvira a conversa surgiu a luz da meia-noite, uma mulher atraente mas de feições sombrias, os olhos completamente escuros, a tez ainda mais pálida do que mortos-vivos, o cabelo negro... sobretudo os olhos lhe eram o aspecto mais sinistro, profundamente pretos destituídos da parte branca que reveste o ocular.
-Também não favorece a mim que o Mestre encontre a Escolhida... eu mais do que você tenho interesse que às coisas continuem desta forma. Disse a mulher indo ao encontro de Demétrius, sua voz tinha o fulgor de quem aguarda ansiosamente a vitoria... o resultado final depois de tanto esforço, embora leve e quase sem afetação havia o desejo implícito em sua voz. A imagem de um futuro obscuro se tingia em sua mente em sombras e escuridão, a glória sombria do despertar de governantes poderosos que um dia no passado foram impedidos de completar sua missão, a transição da luz na escuridão onde reinará o desespero e o medo.
-Logo teremos de volta o filho do Mestre que nos mostrará o caminho certo, a transição será bem sucedida... logo o mundo que hoje nos cerca mudará completamente e o fim dos tempos será o inicio de uma nova época para nós. Em breve o despertar das trevas dará a partida para um novo começo, um novo futuro nos alcança a cada dia, está a porta... não devemos recuar agora, somente os fracos devem temer. Regozijou-se ela em grande júbilo postando-se ao lado dele para mirar o horizonte a meia-noite.
-Se fraquejar agora sabe que sentença o espera. Disse ela, Demétrius se virou devagar sem vontade de desprender-se do horizonte escuro a sua frente e o conforto que a noite trás.
-Eu sei Amelie... mas e sua irmã? Ela pode nos prejudicar também ou se esqueceu de quem ela é?
-Ela pode tentar se quiser mas não vai conseguir nada.
-Posso perguntar como vai impedir a Imperatriz da Luz, a Soberana do Reino Mágico de interferir em nossos planos?. Perguntou Demétrius provocador, o rosto de Amelie foi preenchido por um sorriso vazio e satisfeito.
-Ela não vai incomodar não enquanto Russel estiver sob meu poder.
-Você é perversa.

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