QUARENTA E OITO (BÔNUS)

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O mundo é todo um registro vago das coisas que eu nunca vivi.

Abraços apertados de uma mãe que nunca esteve ali pois chorava e se mutilava o dia todo e beijos na testa de um pai morto na guerra.

O calor da bochecha em um travesseiro de penas que as crianças de Velaris tinham. O som da voz cantarolada entoando histórias de ninar. O gosto da torta de amoras com chocolates quentinha. O cheiro da lavanda nas roupas limpas que eu vestiria para os bailes quando fizesse dezesseis.

Olhar um rapaz de olhos avelã e cabelos escuros e asas negras nas costas e deixar ele me cortejar, vê-lo abaixar a cabeça para meu pai e me pedir em namoro.

Suas mãos seriam limpas, ele não teria cicatrizes e poderia sorrir fácil.

O mundo é todo um registro vago das coisas que eu nunca vivi.

Eu estou afundando.

Sinto isso a cada pulsar em meu peito e a cada respiração que me forço a ter.

Meus olhos estão leitosos, meus membros mutilados e minhas pernas fora do lugar e eu estou afundando nas coisas que nunca tive.

Na promessa quebrada.

A lua.

A única que estaria por mim, a única que me salvou e eu orava todas as noites e confidenciava meus sonhos e hoje sei que sou um erro. Que meus poderes foram acaso ou um projeto sombrio mas que não foi amor.

Então me sinto boba.

Pelas horas de diálogo com o além e as lágrimas derramadas ao nada pois ninguém nunca me ouviu.

Ninguém nunca me perguntou.

O mundo é todo um registro vago das coisas que eu nunca vivi.

Abraçar meu melhor amigo e caminhar com ele como se ambos não tivéssemos nada a perder além de um mundo inteiro.

Olhar para a mulher que ele ama e segurar seu ombro e dizer oi nestha eu acho que nós temos tanto em comum.

Mas eu não posso porque estou quebrada. Eu não posso porque eu não sou...

Eu não sou as heroínas das fantasias que minha mãe nunca leu antes de dormir.

Não sou forte. Meu coração não é de fogo. Eu não sou escolhida. Eu não quebro maldições.

Eu sou a maldição e eu sou o vilão dos contos de fada e eu não posso eu não posso eu não posso eu não posso eu não posso ir até o outro lado do arco-íris porque eu não sou a princesa da história eu sou a bruxa que deve morrer.

Eu pisco mais uma vez e estou afundando eu estou morrendo estou me desfazendo em pequenos pedaços de pele e ossos e células e átomos e eu corro corro corro e eu corro e eu corro mas eu paro.

Não chego a lugar algum.

A água me sobe os pulmões e eu mergulho e mergulho e mergulho e nado nado e eu nado e eu procuro uma saída que nunca chega porque não há saída pra mim, nem mocinhos ou sorte ou barcos salva-vidas eu estou afogando no meio do mar.

Estou numa cama. De olhos fechados.

Mas estou me afogando no mundo que é todo um registro vago das coisas que eu nunca vivi.

Eu tenho esse grito mudo em minha garganta e eu forço e forço e ele nunca sai e então eu fantasio com uma história onde finalmente posso caminhar pelo chão de mármore com vestidos longos e claros e pérolas.

Volto a respirar e sei que não posso.

Não existe pra mim um final feliz.

Então volto a gritar e gritar e peço ajuda por favor me ajude por favor não me deixe para lutar isso sozinha.

As feições dele ficam claras e eu choro e me derramo e pelos deuses... papai, você é lindo.

Asas brancas longas e olhos claros e ele sorri pra mim e toca meu bracinho e me envolve em seu corpo e me diz que sou sua pequena ave.

Ele toca minhas costas e murmura sobre um mundo onde tenho asas brancas e estou de mãos dadas com alguém lindo e forte e de olhos avelã e ele me diz que eu domino o mundo.

Ele acaricia meus cabelos e sorri. Suas asas farfalham e ele se levanta e eu seguro sua mão e então papai por favor não me deixe de novo, fique, ou me leve junto.

Ele se ajoelha de novo e eu tenho só 8 anos. Seus dedos roçam minhas bochechas e ele é luz.

Voe, avezinha. Voe e viva.

Ele murmura e eu me jogo da sacada atrás dele mas ele tem asas e eu só tenho costas inúteis e pequenas e eu caio... estou caindo e caindo e o céu está e afunilando e está ficando escuro e eu estou chorando por que é tão escuro se ainda era dia?

Então estou novamente nadando e então correndo e então voando e morrendo.

Não existe final feliz pra mim.

Eu percebo isso e então eu ouço gritos altos e agudos e desesperados e eu me arranho e me mordo e me bato e minha orelhas sangram pelos deuses de onde vem esses gritos?

De dentro de mim.

Mas meus olhos se abrem e eu estou viva e suada e mais uma vez ferida e ele está ao meu lado.

Os olhos avelã quase dourados. Brilhantes como a lua em um semi eclipse, ele tem uma marquinha no queixo.

Ele é um príncipe.

O príncipe das sombras e ele está ao meu lado e ele é só um garoto agora. Só um garoto. Então eu pisco uma e duas e três vezes e ele merece... ele merece um final feliz.

Luz da minha vida.

Ele murmura. Luz da minha vida. Luz da minha vida. Luz da minha vida. Luz da minha vida. Luz da minha vida. Luz da minha vida. Luz da minha vida.

Estou levantando o braço e meus dedos tocam a pele ferida e suave de sua bochecha e ele está completamente imóvel.

A ponta de meus dedos, um minúsculo pedaço de pele roça a dele e eu queimo e explodo em mil estrelas e visões de mundos distantes onde ele era a noite e eu sua luz ou onde ele era um centauro e eu uma ninfa ou onde ele era o gato preto da deusa do inferno e eu sua pequena rata dourada.

Mil possibilidades.

Milhares de alternativas.

Milhões de universos.

Em todos eles.

Eu. Ele.

O mundo inteiro é um vago registro de todas as coisas que eu vou viver ao lado dele.

Não sou uma princesa. Não sou a mocinha. Estou quebrada. Estou destruída e esmiuçada mas as estrelas. As estrelas em seus olhos e em sua boca e em seus cílios e seus olhos.

- Eu vou reconstruir você. Para sempre. - Ele sussurra.

O mundo inteiro é um vago registro de todas as possibilidades que existem para nós dois.

A Corte de Luz e Sombras (FINALIZADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora