O mundo todo é um registro vago das coisas que eu nunca vivi.
Acordo com a cabeça latejando e o rosto ardendo, dessa vez, ninguém está ao meu lado, o quarto está vazio e o local onde meu parceiro estava, frio.
Ouço algumas vozes baixas vindas da sala.
Não sei quanto tempo eu dormi, mas pela dormência dos meus sentidos e pela força de recuperação da minha magia, eu temo que tenha dormido tempo demais.
Me levanto com muita dificuldade, meus músculos protestam quando eu me espreguiço, estendendo as pernas, estralando os dedos.
Caminho até o banheiro e me olho no espelho.
Estou terrível, um hematoma roxo amarelado na mandíbula, um corte na sobrancelha, meu lábio ainda está inchado, meu corpo inteiro repleto de novas cicatrizes, novos cortes.
Eu estou tão exausta, embora tenha dormido pelo que suponho um longo tempo, me sinto cansada, cansada e suja.
Com dificuldade, desabotoo a camiseta azul marinho e passo pelos braços, grunhindo de dor, abro a calça e a tiro pelas pernas, mal podendo conter a dor na coluna ao me abaixar, tem água morna na banheira, alguém já preparou meu banho e pelo cheiro de lavanda recém colhida eu sei que foi Elain.
Paro por um segundo, observando a imagem de meu corpo na frente do espelho.
Entre meus seios, a luz lilás se dobra em si mesma.
Ali está a pequena luz sutil e traiçoeira, minhas coxas juntas, a cicatriz que desce na lateral do meu abdômen, ganhei quando travei minha primeira luta com Fellas, ele cuidou dela e então nos tornamos amantes.
Isso muito... muito tempo atrás.
Então a queimadura em tons de rosa pálido em minha panturrilha, resultado de Thesália, uma veela da qual roubei uma tiara brilhante apenas para irritá-la, colocando sua peça de ouro e diamante em minha cabeça.
As cicatrizes em meu ombro, nas costas.
As mordidas de Azriel, minhas constantes quedas, a pequena e pálida linha embaixo da orelha, onde, muitos anos atrás, os irmãos assassinos me acertaram com uma pedra e me deixaram morrer na floresta.
Meus olhos têm olheiras arroxeadas, pareço tão exausta quanto estou, meus cabelos estão quebradiços caindo pelas costas, loiros agora num tom de branco.
Sou um monte de carne e ossos costurados por magia, um monte de sentimentos confusos rodando em uma esfera de poder desconhecido dentro do peito.
Me pergunto, por um momento, como seria morrer agora.
Como seria se eu pegasse uma lâmina de aço, minha única vulnerabilidade mágica, e enfiasse dentro no núcleo em meu peito, quase consigo visualizar, o sangue escorrendo vermelho pelos seios e então em minha barriga, minhas pernas cedendo, a queimação na ferida, meu corpo demandando oxigênio, as camadas de magia explodindo pelos ares. Então a paz, o descanso, a acolhedora escuridão abraçando meu corpo.
Uma perfeita bomba-relógio. Seria devastador, porque se eu morresse, toda a enormidade da minha magia se expandiria pelos ares, queimando e destruindo tudo num raio de muitos e muitos quilômetros.
Então, minha consciência vagando pelos ares e se dissipando em calor e frio, eu estaria livre da minha exaustão, eu poderia apenas... poderia esquecer que eu olhei para aquelas fêmeas um dia e senti o puxão no peito, senti o desejo de fazê-las fortes, mais fortes que eu fui, mais capazes que eu fui.
Onde levei minha corte para que isso fosse possível. Eu devo isso a elas, devo minha força, colocar mais uma vez a armadura de prata com bronze, talhar mais uma vez no campo de batalha e destruir, ferir, debilitar e matar.
Penso nas palavras de Vivian.
Quando só tiver nossos corpos para velar... saiba que a culpa foi sua, você foi a nossa ruína.
Lembro de Nestha e seus olhos flamejantes de ódio.
Ao menos eu dou a eles o prazer da distância.
Então imagino como seria se eu não tivesse tomado o rumo contrário que tomaria aquele dia, se não tivesse vindo a Velaris apenas para subir em meu antigo apartamento e olhar as estrelas como olhava quando tive um pai. Se eu não tivesse matado aqueles guardas, se eu tivesse fugido antes de Rhysand aparecer.
Antes de eu colocar meus olhos em cima de Azriel.
Tão lindo, aquele dia. Encontrei nos olhos dele a compatibilidade para minha raiva e minha indignação, quando ele olhou pra mim, suja de sangue e com tanto ódio e deu um impressionante e bem leve sorriso com o canto de seus lábios.
Entro na água morna e deixo que ela me acalme, me embale, me consuma se quiser, deixo que toda a sujeira de meu corpo saia.
Claro que não sai, toda a morte em minha alma sempre estaria ali, como uma batalha estúpida que eu teria de travar.
Molho os cabelos, lavo e passo loção hidratante nas pontas, levando um tempo absurdo em cada processo, sabendo que sou uma covarde desgraçada e que só não quero descer as escadas e encontrar o olhar de todos em mim, e ver quem eu sou e sempre fui.
Saio preguiçosamente da banheira e seco o corpo e os cabelos, me enrolo em um roupão de seda violeta muito claro e paro novamente na frente do espelho.
Menos suja, meus cabelos parecem levemente mais bonitos e sedosos, mas ainda assim estou exausta e ainda assim odeio um pouco o que vejo.
Encontro uma adaga de prata com um cabo chique encrustado de pedras, uma das que eu dei para Azriel de solstício anos antes e corto os fios, sem conseguir impedir que as lágrimas caiam descontroladamente pelo rosto, sem impedir o cansaço, sem impedir a morte de Jolene em minha mente ou o som dos corações explodindo, sobretudo sem impedir o gosto amargo dos lábios de Apollo, seja ele quem for.
Deixo os cabelos na altura dos ombros.
Fecho os olhos e esfrego o rosto.
Permaneça forte, por favor.
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A Corte de Luz e Sombras (FINALIZADA)
FantasíaAthera nunca quis mais do que uma vida tranquila ao lado de sua família, e agora, depois do fim da guerra que deixou traumas, marcas e cicatrizes, ela decide finalmente tentar. A imediata do grão-senhor mais poderoso do país vai em busca de liberda...