CONTO 03

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Terras feéricas, além mar – 397 anos antes.

Os beijos eram cada vez mais vazios e as mãos tocavam mais com a ponta dos dedos, unhas e dentes e não mais com as palmas, com a pele, com as bochechas e os cílios.

Então Fellas sabia que estava perdendo a mulher que amava.

Ela nunca fora dele, e ele sabia. Mas ela entrou em sua vida como um furacão de olhos azuis e cabelos loiros e era injusto que tantos anos depois simplesmente... nada.

Anos antes, Athera voltara a Velaris. Sumira por anos, então, ela estava de volta.

Mas os olhos tinham círculos arroxeados, ela estava cada vez mais magra, cada vez mais infeliz, cada vez se entorpecendo mais.

Ela nunca fora dele, nunca lhe deu amor, nunca lhe deu comprometimento. Mas ele a amava tanto que supôs que podia amar por dois de um modo ou de outro.

Então quando o vinho desceu pela garganta e ele passou a mão pelos cabelos, pensou mais uma vez no que poderia fazer para fazer com que ela fosse mais feliz. O que ela encontrou em sua cidade natal, nunca contou, quando ela voltou assustada, cabelos molhados e asas abertas, ele se espantou, mas estava tão desesperado por ela, tão extasiado que apenas sorriu e abriu a porta.

- Onde ela está? – A voz aveludada, aguda e suave de Thesália soou em seus ouvidos.

Fellas sequer levantou os olhos.

- Dormindo lá em cima.

Um sopro de vento mais forte e ele sabia que a rainha estava sentada ao seu lado. Os cabelos escuros e crespos presos em fios de ouro entremeados. A amizade das duas era incompreensível pra ele, as duas criaturas mais distintas do mundo. Mas ela se preocupava, a amava e queria o bem da mulher mais linda que ele conhecia.

Então tudo bem.

- Fellas – Thesália murmurou, a voz preocupada – ela está infeliz. Você sabe que está. Precisamos intervir, precisamos dizer a ela que volte e-

Os pensamentos do comandante estavam em névoa, ele apertava as mãos em punhos e queria matar alguma coisa naquele momento.

- Não! – sua voz saiu mais alta do que ele pretendia – eu não posso... não posso, Thesália – os olhos claros subiram para o rosto da veela, que o olhava com uma pena amarga – não consigo... sobreviver... longe dela.

- Minha nossa, Fellas, você está sendo realmente exagerado. Ela passou três anos longe.

Ele se lembrava. Aqueles três anos eram prova que ele não estava exagerando. Dia após dia de sofrimento, agonia. Quis, quis como o inferno ir atrás dela. Sofreu como o diabo. Mas ela voltou, ela voltou e como ele poderia dizer a ela que fosse embora? Entretanto, como poderia vê-la sofrer de saudades da família que fez pra si.

- Eu a quero aqui. – Ele grunhiu.

A veela sorriu e passou os dedos pelo rosto de Fellas com carinho de uma irmã.

- Meu querido... você sabe bem que ela não é feliz aqui. Nunca foi. Ela suportou tantos anos, ela esteve entre nós e salvou nossas vidas mais do que poderíamos pedir e... nós a amamos. Mas esse não é o lugar dela, ela está definhando, bebendo barris de vinho e cheirando montanhas de pó de fada, ela só suporta estar viva quando está dopada.

A verdade atingiu o rosto de Fellas como um soco. Ele sabia. Minha nossa, pelo inferno em chamas como ele sabia, e como isso o estava destruindo por dentro. Ele queria se contentar com os anos que ela permitiu que ele tivesse em sua presença, ele queria, mas como podia? Como iria?

Ele terminou sua bebida e levantou-se.

- Eu sei, Thesália – ele murmurou, derrotado – eu vou... puta que pariu... eu vou pensar nisso.

A veela colocou-se de pé e sorriu para ele com carinho.

- Ela vai embora, Fellas – ela disse, voltando a passar a mão em seu rosto – ela não vai ir contra a própria natureza por muito mais tempo. Estou dizendo isso para que você se prepare.

Mas ele não queria ouvir verdades ácidas e venenosas, ele queria mentiras doces na língua como os beijos da mulher que dormia em seu quarto. Então virou as costas e passou por seus guardas, esbarrou em Naiade, de pé guardando a porta.

- Onde ela-

- Dormindo – a garota disse – estava em pesadelos minutos atrás.

Merda. Merda. Merda.

Ele abriu a porta de carvalho e entrou no quarto. O cheiro dela... todo ali, impregnado nas paredes escuras, no dossel de madeira escura. O vento entrava pela janela de vidro enorme e ela dormia com o corpo coberto por um lençol de seda branca.

Abraçada em um travesseiro, o rosto tranquilo, os cabelos loiros espalhados pela cama. Ele se aproximou, a presença dela o enchia de fogos de artifício prontos para estourarem.

De pé ao lado da cama, Fellas passou os dedos na mandíbula afiada e ela piscou algumas vezes e abriu os olhos. Ela era tão fodidamente linda.

As pupilas dilatadas e ela sorriu pra ele, com os dentes retos, grandes. Os caninos alongados.

Os olhos azuis estavam vidrados e ela parecia feliz, parecia apaixonada, ela parecia... Fellas seguiu o olhar dela discretamente e então soube.

Um macho grande, asas escuras abertas nas costas, uniforme preto com fivelas e faixas, cabelos pretos caindo sobre a testa estava parado a dois telhados de distância, certamente pensou que ele não estava vendo.

Virou-se para Athera de novo, ela havia fechado os olhos. Ainda estava sorrindo. Ele roçou os dedos novamente na pele pálida e ela riu novamente. Um som lindo, suave.

- Oi, coração flamejante. – Ele murmurou.

Ela apertou o travesseiro.

- Eu estava... – ela sussurrou, entre as alucinações das drogas que usou – com tanta... tanta... – olhos ainda fechados e corpo relaxado – saudade... tanta saudade de você.

Fellas sorriu, minha nossa, ele sentia que iria explodir.

- Tanta saudade... eu... – ela apertou mais o travesseiro – eu sinto tanta... saudade... Azriel.

Então seu coração quebrou em milhares de pedaços, estilhaçado pelo chão, caindo e caindo e caindo. Um olhar para a janela e o macho havia sumido. Então ela estava chorando. Chorando e abafando o grito no travesseiro.

Ele sentou na cama e segurou as mãos dela entre as suas, ela estava fora de si ainda.

- Sinto muito... Rhys... – ela choramingava – eu não posso voltar... por favor... por favor diga ao Cass que eu... e ele... eu estou viva... e – ela balbuciava, entre palavras entrecortadas e lágrimas molhadas, olhos fechados e dedos trêmulos – Azriel... por favor... por favor... eu sei, eu sei. Sim, eu... eu quero voltar, eu quero, meu amor.

Fellas Scheneitheham sabia fazer muitas coisas.

Mas ele não sabia refazer o próprio coração.

Por isso ele sabia que precisava deixar ela ir. 

A Corte de Luz e Sombras (FINALIZADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora