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A jovem freira com a garotinha no colo se afasta do abrigo de ônibus, e nós as acompanhamos de perto. É difícil enxergá-las em meio às cortinas de chuva que desabam do céu, mas também é impossível perder de vista aquele guarda-chuva vermelho. Seguimos sua cor berrante pela noite. Em meio à escuridão, as luzes dos postes lançam sobre as calçadas um brilho surreal, dando à rua uma aparência de filmes antigos em preto e branco. Deixamos para trás o centro da cidade e caminhamos por uma estradinha de terra. Quinze minutos depois, estamos diante de um muro branco, com um portão gradeado trancado por uma corrente com cadeado. Do outro lado, vemos um pátio de chão de pedra.

A freira, agora encharcada porque deixou a maior parte do guarda-chuva cobrindo a cabeça da garotinha, se aproxima do portão e toca o interfone. Espera quase um minuto debaixo da tempestade e, quando ninguém atende, ela dá três grandes passos para a esquerda, para e bate com a mão fechada em um tijolo no muro. O golpe produz um barulho oco.

Com cuidado para não derrubar a garotinha, a jovem agarra o tijolo no qual batera e o puxa. Ele desliza com facilidade para sua mão, revelando uma abertura retangular no muro. De dentro dela, a jovem retira uma chave que usa para abrir o cadeado na corrente do portão.

- Desculpe por isso, querida – ela diz para a menina. – Já falei mil vezes para a madre que esse interfone está com problemas, mas ela não me escuta.

Passamos pelo portão gradeado antes que a jovem o feche na nossa cara. Um relâmpago carimba a noite, e no clarão estroboscópico que se segue vemos o contorno da torre de uma igreja com uma cruz no topo. Estamos no pátio de um convento. À nossa frente há uma fonte com a imagem da Virgem Maria de mãos abertas, água jorrando de suas palmas. Essas estátuas de santos e santas sempre me deram calafrios. Acho que a culpa é dos olhos. São vazios, nada além de mármore branco. Nunca me pareceram pertencer ao tipo de gente preocupada em salvar a humanidade.

Agora correndo, a jovem freira segue na direção dos dormitórios do convento. Sobe os degraus que levam à entrada aos tropeções, quase escorregando e rolando escada abaixo. Mantém a cabeça da garotinha pressionada contra o peito o tempo todo para protegê-la das gotas frias que caem. Alguém espera por ela à porta, outra mulher vestida de batina marrom e também com um guarda-chuva, embora esse seja preto e sem graça. O tipo de cor que não enxergaríamos na tempestade.

- Irmã Miranda! – grita a mulher. – Meu Deus, onde você estava?

A jovem freira passa pela mulher sem cumprimentá-la e entra na recepção do convento. Livre da tempestade, finalmente. Só então abaixa o guarda-chuva vermelho e solta um suspiro cansado. Está tão encharcada que a batina molhada se gruda às curvas de seu corpo como uma segunda pele prestes a cair. Em seu colo, a menininha bate os dentes.

- Desculpe, madre – diz a jovem. – Tive um contratempo.

A mulher fecha a porta do convento e passa a chave.

- Mandei você comprar verduras. O que pode haver de difícil nisso? – diz a madre. – Além do mais, você deveria ter esperado esse aguaceiro passar antes de...

A mulher se vira para a jovem e seus olhos se arregalam. Não notara até então a garotinha que ela trazia nos braços.

- O mercado estava fechado – a jovem freira dá um sorriso sem graça. – Mas olha só o que eu achei.

***

Cinco minutos mais tarde, a freira está sentada à mesa de carvalho que fica no escritório da madre. A irmã Beatriz, que agora cuida da garotinha, dera-lhe uma toalha de rosto, que ela usa para enxugar os cabelos. O que não serve de nada para diminuir o frio que está sentindo. Treme dentro da batina e tem que se esforçar para não deixar os dentes baterem uns nos outros.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora