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Três dias depois, às nove horas da manhã de sábado, Lou Campbell entrou no saguão do aeroporto de New Shore com uma passagem para Washington no bolso do paletó, um colar cervical no pescoço e uma muleta debaixo de cada axila. Precisava delas para se locomover porque, segundo o médico, seu joelho esquerdo "explodira como a cabeça de John Kennedy". De morrer de rir. Pelo menos o bom Dr. Boyle, o cirurgião ortopédico do Hospital Geral, teve a decência de não fazer piadas com as demais lesões de Campbell: quatro costelas quebradas e duas trincadas, três pontos de fissura na coluna e uma fratura aceta-qualquer-merda. Campbell não sabia como pronunciar, mas sabia que a dor em seu quadril era suficiente para fazê-lo desejar ter nascido sem um quadril. Em outras palavras: ele estava todo fodido. E pedira por aquilo.

Devagar, ele se dirigiu para o mesmo café no qual comera um sanduíche ao chegar à cidade na quarta-feira, quando ainda não sentia como se seu corpo fosse um saco cheio de lascas de vidro. Bons tempos. Deixou-se afundar em uma cadeira com um gemido de dor e colocou a pasta do espécime 0002 na mesa. Dos alto-falantes, aquela voz metálica, feminina e sem emoção, anunciava os próximos voos para as poucas pessoas que estavam no aeroporto.

- Senhor, eu posso anotar o seu... – o rapaz de avental que se aproximou com um bloquinho de notas na mão olhou para Lou Campbell e sua voz morreu com um som de disco arranhando.

Lou sorriu para ele por cima do colar cervical, seus lábios esticados relevando uma janela escura no lugar do dente incisivo central e outra onde antes ficava o canino direito.

- Eu sei – disse Lou Campbell. – Nada bonito, né? Fui atropelado.

O rapaz deu-lhe de volta um sorriso perfeito, sem nenhum dente faltando. Ah, as maravilhas da juventude.

- Sei – disse o rapaz do café, recuperando-se da surpresa inicial de ver um homem no estado de Lou Campbell sentado à mesa. – Posso anotar seu pedido, senhor?

- Vou querer só um suco de laranja – disse Lou. – Ah, e com canudinho, por favor. Eu não... – ele apontou para a boca. Havia um inchaço redondo do tamanho de uma bola de meia no lado esquerdo de seu maxilar. – Bom, eu não posso fazer muito esforço.

O rapaz assentiu e se retirou para o balcão sem sequer anotar o pedido, lançando olhares por cima do ombro para Lou e para as muletas que repousavam encostadas à cadeira. Lou Campbell ignorou aquilo e voltou-se para a televisão do café. Precisou girar todo o corpo na direção do aparelho, uma manobra dolorosa que quase o fez chorar. Ainda assim era melhor do que virar apenas o pescoço. Se fizesse isso, provavelmente desmaiaria.

O jornal matinal mostrava imagens do parque de diversões. Estava escuro no tempo-da-TV, e a reportagem só podia ter sido gravada na noite de quarta-feira, quando todos ficaram sabendo que a polícia finalmente colocara fim ao reino de terror do serial-killer de crianças. É claro que Lou Campbell sabia melhor. Sabia que o carro que o atropelara tinha também passado por cima do assassino.

Na tela, uma repórter de cabelo loiro e curto falava tão excitada ao microfone que chegava a cuspir. O volume da televisão estava baixo demais para que Lou escutasse o que ela dizia, mas ele era capaz de ler a manchete, a despeito da película de sangue vermelha que embaçava seu olho direito: Fim do Terror – Assassino de crianças é morto em confronto com a polícia. Atrás da repórter, Lou podia ver homens fardados correndo para lá e para cá debaixo das luzes do parque e do pisca-pisca das sirenes das viaturas.

O rapaz colocou o copo de suco de laranja sobre a mesa, ao lado da pasta parda. Lou desviou os olhos da televisão e agradeceu com um aceno de cabeça. Arrependeu-se imediatamente: a dor na parte posterior do seu pescoço foi tão grande que ele achou que alguém perfurava suas vértebras cervicais com uma broca de furadeira. Gritou.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora