2 (I)

318 48 3
                                    

Sophia pegou um táxi para o convento de Nossa Senhora do Sagrado Coração. Chapman perguntara se ela não queria usar o Ford Ranger, mas Sophia recusara prontamente. O veículo era de Yuri, e ela tinha vontade de gritar só de pensar em sentar-se atrás daquele volante, olhar pelo retrovisor e ver refletida a boneca de cabelos vermelhos. Seriam lembranças demais. Lembranças que a rodeariam e ficariam batendo em sua mente, memórias de Yuri e sua família. Lembranças das quais ela planejava manter uma boa distância.

O sinal mudou de amarelo para vermelho e o táxi parou no semáforo. No banco de trás, Sophia encostou a testa no vidro da janela e observou as pessoas caminharem pela faixa de pedestre, carregando bolsas, sacolas cheias de compras e conversando animadas, indiferentes ao que acontecia com ela. A indiferença era uma benção da qual Sophia desejava ser digna. Ficaria de joelhos para recebê-la, se preciso. Assim, não teria que se sentir como agora: como se houvesse um buraco no centro de seu peito, que não servia para nada além de machucar e deixar soprar um vento gelado de inverno.

- ... não é mesmo? – disse o taxista.

Sophia desviou o olhar da calçada para o rosto dele no retrovisor.

- Desculpe?

- Eu disse que parece que o tempo vai virar – ele falou.

- Ah – Sophia olhou para o céu, coberto de nuvens pesadas e escuras. Havia um pouco de sol, raios pálidos que achavam brechas aqui e ali naquele cobertor de algodão negro cheio de chuva, mas o calor do dia anterior tinha sido varrido. – É, vai virar.

- Que alívio. Pensei que aquele calor de ontem fosse me matar.

- Hum...

O sinal abriu e o taxista voltou a dirigir por New Shore. Sophia repousou a cabeça no encosto do banco e fechou os olhos. Não dormira nada depois que Grimmes ligara do hospital para dizer que Yuri não tinha resistido, e sentia-se exausta. Mais emocionalmente do que fisicamente, o que era o pior de tudo. Com as dores dos músculos ela podia lidar. Já as dores do coração são sempre mais complicadas.

Não demorou e o táxi entrou na rua que levava ao convento, e lá Sophia viu algo que a fez sair do rodamoinho de cansaço, sono e tristeza. Caminhões. Caminhões com caçambas de um vermelho tão brilhante que doía nos olhos, pintadas com estrelas douradas, palhaços coloridos fazendo malabarismo e sóis sorridentes. Estavam estacionados em fila no campo que, geralmente, era tomado por barraquinhas de feiras nos fins de semana, rodeados por homens vestidos com macacões cinzas que tiravam dos veículos imensas vigas de metal. Os olhos da garota caíram em cima de alguns carrinhos de bate-bate deixados na grama, depois em um grande esqueleto de aço de uma montanha-russa. E ela sabia que faltavam ainda as tendas de tiro ao alvo, as de algodão-doce, e também um carrossel, uma roda-gigante, uma mansão do terror e uma Casa Maluca. E muito, muito mais, porque aquilo ali era um parque de diversões.

- Não acredito que eles vão montar o parque este ano – comentou o taxista. – Não com os assassinatos que aconteceram.

Sophia escutou-o apenas parcialmente. Estava fascinada, olhando um grupo de homens montando na grama o que parecia ser as bases da barraca de tiro ao alvo.

- Caramba – disse Sophia. – Eu costumava...

O restante da frase se perdeu quando o táxi freou de súbito, lançando Sophia de encontro ao banco de passageiro. Ela bateu no assento o lado esquerdo e queimado do rosto e estrelas de dor tão brilhantes quanto aquelas pintadas nas caçambas dos caminhões rodopiaram por sua vista.

- Que foi isso?

- Olhem por onde andam, porra! – gritou o taxista.

Através das lágrimas que marejavam seus olhos, Sophia viu uma procissão de pessoas, parecida saída de um filme do Tim Burton, atravessar a rua em frente ao táxi, pedindo desculpas e apertando o passo. Homens e mulheres vestidos com roupas espalhafatosas, usando capas, turbantes e bijuterias de ouro falso que brilhavam mesmo com a escassa luz do sol. Sophia reconheceu-os imediatamente da Casa dos Quarenta Ladrões, aonde você ia para ter as palmas das mãos lidas ou o futuro desvendado por cartas de tarô, e tudo pela pechincha de dez dólares. Fora lá com Pietra uma vez, e uma tal de Madame Júpiter previra o destino delas com a ajuda de um globo esfumaçado que emanava uma luz branca e coalhada. As linhas de suas vidas são como trilhos de um trem que seguem lado a lado rumo à felicidade, ela dissera essa frase ridícula com uma voz profunda e rouca. Depois engasgara e precisara beber um copo d'água. Vocês serão felizes, queridas. Bom, Madame Júpiter, você errou feio. É melhor consertar a porra dessa sua bola de cristal.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora