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Depois que acordou, Sophia demorou um pouco para entender onde estava. Pensou que continuava em Boston, dormindo em seu quartinho enquanto Lívia preparava panquecas na cozinha. Então as lembranças vieram e a sintonizaram no mundo real. Afastou a testa da parede fria e rolou de costas, encarando o teto branco e o ventilador que girava preguiçoso. Fazia tanto calor que ela sentia os cabelos grudados na testa e uma poça de suor se formar abaixo de si no colchão.

- Bom dia, raio de sol – ela murmurou e esfregou os olhos sonolentos. Segundo o relógio na parede, já passava das nove da manhã. Mas que merda. Ela queria ter acordado mais cedo para ver a coletiva. Pedira para que Chapman não a deixasse dormir demais. E Chapman sendo Chapman com certeza a ignorara por achar que ela precisava de um descanso.

O que não deixava de ser verdade. Quando se deitara na cama, sua cabeça doía tanto que ela achou que seu cérebro fosse pular para fora do crânio como um daqueles palhaços de mola que saltam de caixas. Imaginou que seria impossível dormir com uma enxaqueca daquelas, mas seu corpo logo desligou devido ao estresse e ao cansaço e, agora, aqueles dentes que mordiam sem parar sua mente tinham ido embora. Sophia não sentiria falta deles.

Pulou da cama e ligou a televisão do quarto. O canal de notícias mostrava uma matéria sobre os velocistas que participariam das próximas Olímpiadas, mas havia também um número de telefone no canto da tela, flutuando acima da sigla NSPD. Sophia cravou os dentes no lábio inferior, mastigando de leve as pequenas aftas que geralmente brotavam ali devido à sua mania de morder a boca. Queria estar na delegacia caso eles recebessem alguma informação importante. Chapman iria pirar se ela aparecesse por lá, e a própria Sophia sabia o quanto a ideia era idiota – quando você é uma fugitiva procurada, você não sai desfilando por aí em um lugar lotado de policiais. Evite delegacias e lojas de rosquinha: é o básico do básico.

- Que se foda – ela desligou a televisão, arrancou a roupa e foi para o banheiro tomar uma rápida chuveirada. Depois, iria para a delegacia. Não dirigira até New Shore para ficar trancada em um quarto.

Quando entrou no banheiro, Ashley Morgan estava lá.

Sophia estancou à porta. A garotinha estava de costas para ela, parada em frente à pia. Seu rosto refletido no espelho era de uma palidez desconcertante. A palidez dos mortos. O tom de pele quente e vivo característico de uma menina saudável de 8 anos deixara suas bochechas, dando lugar a um cinza escuro, meio esverdeado. Seus lábios tinham ficado roxos, e Ashley os mexia bem devagar. Sussurrava alguma coisa. Toda paleta de cores de seu organismo fora virada de cabeça para baixo: ela era como o negativo de uma fotografia. Exceto pelos cabelos e os olhos: eles continuavam iguais a antes, despontando feito girassóis em uma floresta de árvores mortas.

Ashley não era uma alucinação causada por drogas, muito menos coisa da cabeça de Sophia. Ela estava ali, sussurrando para o espelho, e Sophia não tinha ideia do que fazer. Aquilo nunca acontecera antes: ela já vislumbrara ecos de morte, mas jamais chegara a se comunicar com um fantasma. Isso se Ashley fosse um fantasma, coisa que Sophia achava que a garotinha não era. De uma forma ou de outra, Sophia não sabia que possuía uma habilidade assim, mas sabia que não queria possuir.

- Ashley? – chamou Sophia. Estendeu uma mão para a garota. – Querida?

Ashley virou-se para ela e Sophia recuou a mão, dando um passo para trás. Sua bunda se chocou contra a parede do banheiro e ela sufocou um grito.

- Ele está vindo atrás de você – disse Ashley. A garotinha estava com o mesmo vestido branco que usava quando foi morta. Sophia lembrava-se dele das fotos. – Ele quer colocar você nas prateleiras.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora