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Eu me pergunto em que momento a irmã Miranda Days descobriu que Sophia Manning era diferente. Que havia algo de especial nela. Oportunidades para que Miranda percebesse algo assim não faltaram durante aqueles primeiros dois meses em que Sophia viveu no convento, desabrochando aos poucos conforme caía na rotina das irmãs e as conhecia melhor, dividindo o quarto com Miranda e Pietra, perambulando descalça pelos corredores – ela possuía uma aversão a qualquer tipo de calçados, talvez por causa das bolhas ainda não cicatrizadas em seus pés – ou até assistindo em silêncio às missas na igreja. Embora eu sempre a aconselhasse a tomar cuidado – controle-se, boneca, não vá fazer nada que ponha você em enrascadas, eu dizia – acidentes acontecem. E ela era uma criança, caramba. Ninguém podia culpá-la por um deslize ou outro.

Acidentes. Deslizes. Amostras em doses homeopáticas da coisa que fazia dela especial. Às vezes, por exemplo, ela respondia a pensamentos, deixando as pessoas confusas sobre se tinham falado em voz alta ou não. Como na tarde quente em que a irmã Amanda passava pano molhado no chão do terceiro andar, pensando "meu Deus, que calor insuportável", e Sophia, que a seguia de perto e carregava para ela o balde d'água, dissera "está mesmo". Ou na manhã em que a irmã Page fazia palavras-cruzadas no refeitório, mordendo a borracha do lápis e remoendo na mente a dica "afundar na água", e Sophia lhe soprara: "mergulhar". Em outras ocasiões, ela encontrava objetos que as irmãs tinham perdido – a irmã Emily derrubara a chave da igreja no ralo da lavanderia; a irmã DiCaprio esquecera o livro que lia escondida da madre, Lolita, na primeira cabine do banheiro térreo; a carteira da irmã Melissa escapara por um buraco no bolso da batina e caíra no estacionamento.

O mais extraordinário desses acidentes – que, em minha opinião, não foi um deslize, mas um tombo – aconteceu em uma noite de domingo, após a missa das 20h. Sophia ajudava a madre e as demais irmãs a tirar a mesa da comunhão no altar da igreja e esbarrou com o braço na mão de Deborah. Deixou cair o prato com as uvas e por pouco não derrubou também aquele cálice de ouro que, quando levantado, fazia todo mundo desabar de joelhos.

- Opa – a madre Deborah se ajoelhou para pegar o prato e as uvas. Viu a expressão no rosto de Sophia e deu-lhe um sorriso tranquilizador. – Não precisa ficar com essa cara. Não tem problema.

Eu tentei. Juro para você que tentei. Não faça isso, eu disse. Fique quieta, boneca, ou vai arrumar problemas para nós. Mas ela fingiu não me ouvir.

- Você tá doente – disse Sophia.

Encarava a madre com os olhos a ponto de caírem das órbitas. As mãos fechadas em pequenos punhos. Mastigava o lábio inferior.

- Como é? – disse a madre.

- Você tá doente – repetiu Sophia. – Tem uma coisa escura na sua barriga. Parece café derramado. Ela está com fome e quer comer você.

- Sophia! – irmã Miranda, que estava nos fundos da igreja checando os bancos atrás de algum objeto esquecido pelos fiéis, como uma carteira ou uma chave, fazia um gesto para a garotinha se aproximar. – Venha cá e deixe a madre em paz!

Sophia obedeceu. E madre Deborah ficou quase um minuto sem se mexer, boquiaberta, com o prato de ouro em uma das mãos e o cacho de uvas na outra, como se fizesse uma oferenda ao Jesus pendurado na cruz acima de sua cabeça.

Na segunda-feira, com as palavras da garotinha ecoando em seus ouvidos, madre Deborah foi a um médico. Após alguns exames, ele a encaminhou para um oncologista. Câncer no estômago, estágio 2. Se demorasse mais alguns meses, seria muito tarde para o tratamento. Cedo assim, as chances dela eram altas. No dia em que recebeu a notícia, ela voltou para o convento às lágrimas, subiu as escadas até o quarto de Miranda no segundo andar, entrou sem bater e encontrou Sophia desenhando com Pietra no chão, sentadas em meio aos lápis de cor.

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