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- Você tinha que estar lá para entender o que eu quero dizer. Era como se o ar daquele lugar fosse venenoso. A cidade parecia do avesso. Eu os amava. Amava Josh, Liz e a filha dela. Mas odiava Oldwheel.

- Não me surpreendendo – disse Chapman. À luz azul da televisão, que agora passava o segundo filme do Poderoso Chefão, seu rosto parecia ser feito de estática. – Não depois das histórias que você me contou.

- Não eram histórias – disse Sophia. – Eram... Olha só, eu encontrei essas crianças uma vez. Tinha saído para comprar algumas roupinhas para o bebê de Lizzy, e voltava para a oficina quando vi um grupo de três meninos e uma menina em uma ruela. Deviam ter sete, oitos anos. Carregavam pedaços de pau, tacos de basebol e enxadas, e batiam em alguma coisa no chão. Quando me aproximei, vi que o monte de trapos caído era outra criança. Os garotos a surravam e riam, batendo e batendo, e ela já devia estar morta àquela altura. Só podia. Gritei para eles pararem e, quando cheguei perto do grupinho, percebi que a coisa no chão era na verdade um espantalho com roupas infantis. Eles pararam com aquilo e olharam para mim, com os sorrisos ainda nos rostos. Lembro-me que um dos meninos tinha uma mão torta, parecida com uma garra. E metade do rosto da menina estava tomada por feridas abertas. Fedia pra caramba. Ela me olhou e disse: "estamos só praticando, sua boba". Fiquei sem reação, e os garotos saíram correndo. A menina ainda se virou e me deu um tchauzinho.

- Santo Deus, Sophia.

- Era o tipo de coisa que acontecia por lá, entende? – ela deu de ombros. – Só que ninguém percebia, ou todo mundo fingia não notar. De uma forma ou de outra, Oldwheel era ruim. E viva. Tinha certeza disso na época, e ainda tenho. E por que você está me olhando assim?

- Você realmente comprou roupas para o bebê de Lizzy?

- Comprei. Eu tinha dinheiro para isso. Por quê?

- Olhe só para você, toda maternal.

- Ah, vá se foder – ela inclinou-se para frente no sofá e deu um soco no ombro de Chapman. – Eu também construí um bercinho para ela. Josh trouxe o material da oficina, e ele e eu passamos uma semana montando tudo. Ficou muito bom. Queria que você a tivesse conhecido, Benny. Queria que você tivesse conhecido todos eles, mas Eva em especial. Ela era a coisinha mais pura desse mundo.

- Tenho certeza.

- Quer ouvir uma coisa engraçada? Ela não chorou quando nasceu. Sei que todos os bebês choram quando nascem, mas Eva não. O que ela fez foi sorrir. Como se visse nesse mundo uma beleza que todos nós já esquecemos de como enxergar.

16

A Harley estava pronta. Sophia trepou no banco de couro e deu partida uma, duas, três vezes. O motor pegou com um ronco alto que fez uma onda de prazer percorrer seu corpo. Era o som mais bonito que ela já tinha escutado. O escapamento tossiu nuvens de fumaça, o ponteiro da velocidade subiu e desceu, subiu e desceu, e Sophia encaixou o pé na pedaleira. Sentia-se como o Dr. Frankenstein diante de seu monstro: ela está viva, VIVA!

A porta da garagem da oficina estava aberta, e Josh e Greg, que sorriam tanto quanto a própria Sophia, saíram da frente dela e liberaram o caminho para sua Harley-Davidson Night Rod.

- Vá, garota! – Josh deu um tapinha no tanque da Harley.

E Sophia foi.

Sem capacete, sem jaqueta de proteção, uma garota magrela coberta de suor e graxa, com calos nas mãos de tanto trabalhar na Harley que agora pilotava. Saiu para a rua, quase atropelando um cara que andava na calçada e tirando tinta de um poste. Um monstro escuro de metal com mais de 300 kg rugia entre suas pernas. Um motor de 125 cv de potência fazia cada átomo do seu corpo vibrar. Lágrimas brotaram em seus olhos quando o vento lhe açoitou o rosto. Ela escutava o som dos pneus cantando no asfalto, via o sol brilhando nos retrovisores, e foi tomada por aquela sensação de liberdade sem limites que só sentia na Estrada. Trocou de marcha, acelerou ainda mais, segurou os guidons com tanta força que seus dedos estalaram. Virou uma esquina, fazendo uma curva tão fechada que a pedaleira chocou-se contra o chão e levantou uma chuva de faíscas. Pessoas berravam para ela olhar por andava, para tomar cuidado com a porra daquela moto, mas Sophia não estava nem aí. O que ela estava era exultante, sorrindo de orelha a orelha, e sua vontade era de abrir os braços e gritar a plenos pulmões que tinha asas e podia voar. A única coisa que a impediu de fazer isso foi o fato de não querer sofrer outro acidente. Mas ela voou.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora