O interior da delegacia de New Shore estava abençoadamente frio, e Chapman ergueu o rosto coberto de suor para o ar-condicionado. Foi logo arrancando a gravata e o paletó, sentindo-se sem eles como um prisioneiro que acaba de escapar de Alcatraz.
- Eu sempre pensei que não conseguiria viver sem minha família, uma boa cerveja e uma boa música – disse Watson ao lado dele. De braços estendidos para o ar-condicionado na parede, ele parecia um religioso entoando cânticos na igreja. – Agora acho que vou adicionar o ar-condicionado à lista.
- Nem me fale – disse Chapman. – Pelo menos você não teve que enfrentar os jornalistas.
Watson baixou as mãos e deu um tapinha no ombro de Chapman.
- Você se saiu bem – ele disse.
- Mesmo?
- Mesmo. Nem Houdini teria escapado das correntes tão rápido quanto você escapou daquela gente.
Chapman riu. Depois de responder a cinco ou seis perguntas das centenas gritadas pela imprensa, ele fingiu estar passando mal por causa do calor e se retirou. Foi esperto, mas não de todo desonesto: se ficasse mais alguns minutos naquele palanque, com a cabeça assando ao sol, iria mesmo desmaiar ou qualquer coisa assim.
- Anos de experiência, meu amigo – disse Chapman.
Havia um filtro do lado do balcão da recepção, a água no galão tão gelada que chegava a enfumaçar o plástico azul. Só de ver aquilo Chapman sentiu-se melhor. Encheu copinhos para ele, Grimmes e Watson. Depois viu Cohen vindo até eles e encheu mais um.
- Obrigado – agradeceu Cohen quando Chapman lhe estendeu o copo plástico. O rosto do chefe de polícia estava tão vermelho por causa do sol que lembrou a Chapman os tomates que comera na noite de domingo, enquanto jantava com Lívia e Sophia. – E agora? O que acontece?
- Agora a gente espera – disse Chapman. – E rezamos para que alguém tenha visto o filho da puta.
- Um brinde a isso, diretor – Cohen ergueu o copo de água gelada para ele e bebeu tudo em um gole.
Não tiveram que esperar muito. Logo todos os telefones da delegacia de New Shore estavam tocando ao mesmo tempo, criando uma sinfonia irritante de prriiiiim seguido de "alô, delegacia de New Shore, como posso ajudar?" Os policiais corriam pelo lugar com bloquinhos de anotações nas mãos, fardas suadas e caretas no rosto.
Chapman sentou-se nos banquinhos da recepção com Grimmes e Watson. Fizeram questão de pegar os lugares que ficavam bem debaixo do ar-condicionado.
- Acha mesmo que vai dar em alguma coisa? – perguntou Grimmes.
- Acho que sim – respondeu Chapman, e dizia isso não somente porque apostara praticamente todas as suas fichas na coletiva. – Alguém deve ter visto o cara.
- Quando comecei nesse trabalho, o meu primeiro caso foi sobre um maluco que explodia botijões de gás no metrô de Nova York – disse Watson. –Um sujeito careca e de óculos. Professor de química ou de qualquer outra merda complicada assim.
- Como o Walter White? – disse Grimmes.
- Exatamente como o cara do Breaking Bad – disse Watson. – Acho que até cavanhaque ele tinha. De qualquer forma, esse maluco deixava um botijão aberto, soltando gás nas saídas das estações de metrô. Sempre que alguém passava perto com um cigarro acesso – Watson estalou os dedos, o barulho se perdendo entre os telefones que tocavam – o botijão explodia. O homem causou a morte de oito pessoas em uma semana com essa brincadeirinha.
Chapman recostou-se no banquinho e terminou de beber seu segundo copo d'água. Continuava com sede e havia uma dor no meio de sua testa. Pelo visto o sol realmente quase o deixara à beira de uma desidratação.
- Onde você quer chegar? – disse Chapman.
- O nosso amigo tarado por explodir pessoas tinha uma cicatriz bem aqui – Watson apontou a sobrancelha direita. – Uma coisinha de nada. Apenas uma falha. O cara provavelmente bateu a testa quando criança e a marca ficou. Agora, escutem só essa: ele usava óculos escuros e cobria a boca e o nariz com uma máscara de hospital, daquelas brancas que as pessoas às vezes usam quando saem de casa para fugir de doenças e da poluição. Um dia, um morador de rua viu o homem deixando um botijão com a maior naturalidade do mundo na saída de um metrô. Ninguém morreu daquela vez, porque o sem-teto contou para um policial o que tinha visto. Quando cheguei para interrogar o mendigo, sabem o que ele me disse?
- Que o cara tinha uma cicatriz na sobrancelha – disse Grimmes.
Watson apontou o dedo para ele.
- Que o cara tinha uma cicatriz na sobrancelha – disse Watson. – Uma cicatriz minúscula. O morador de rua não podia nos dizer como era o rosto do homem, claro, por causa da máscara e dos óculos escuros, mas ele viu a cicatriz – Watson fez uma pausa para beber da água. – O que eu estou dizendo é: você sempre nota as falhas dos outros, não importa o quão pequenas elas sejam. Acho que é a natureza humana. Nós nos sentimos superiores quando percebemos que a pessoa sentada ao nosso lado no ônibus tem algum defeito. Se a cicatriz desse assassino é tão visível quanto Sophia diz...
- Fale baixo – disse Chapman.
- ... quanto Sophia diz que é – Watson baixou a voz para um sussurro – então com certeza alguém reparou. Podem ficar tranquilos quanto a isso.
Cinco minutos depois de Watson contar sua história sobre o homem do botijão de gás, Cohen veio correndo até eles pelo corredor da delegacia, o rosto ainda vermelho e os olhos ansiosos. Ele trazia um bloquinho nas mãos. Assim que o viu, Chapman levantou-se com um pulo.
- Alguma coisa pra gente? – ele perguntou.
- Talvez – Cohen parou para recuperar o ar, respirando fundo repetidas vezes, e Chapman teve que se controlar para não segurar o homem pelos ombros e mandá-lo desembuchar logo. – A maioria das chamadas é alarme falso. Despachei uma viatura para a casa de uma senhora que disse que o vizinho apareceu ontem com uma atadura no pescoço, e outra para uma cafetaria. A dona falou que às vezes um homem – ele fez aspas com os dedos – "muito suspeito" aparece por lá, embora ela não tenha notado nenhuma cicatriz.
- Nenhum deles parece ser o nosso cara.
- Não. Mas é o melhor que temos até agora.
Chapman suspirou. Esperava que, àquela altura, eles já tivessem alguma pista sólida para seguir, algo que não viesse da boca de vizinhos fofoqueiros ou de donas neuróticas de cafetarias.
- Certo. Mantenha-me informado – ele disse.
- Pode deixar – Cohen assentiu. – Não vai atender?
- Como é?
- O seu celular está tocando.
De testa franzida, Chapman apalpou a calça social e tirou o celular do bolso direito. Estava mesmo tocando, só que Chapman achou que o priiiiim que ouvia viesse dos telefones da delegacia, e não do aparelho em sua mão. Não havia número algum na telinha, que dizia apenas "desconhecido".
Chapman pediu licença para Cohen e juntou-se a Grimmes e Watson para atender.
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A Voz da Escuridão.
Paranormal[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de Fallpound, no interior dos Estados Unidos: o primeiro de uma série de assassinatos que assolou a região em 2009, cometida por uma seita satâ...