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Creck-creck-creck dentro de sua cabeça. Dentes mordendo as paredes de seu crânio. Mastigando seu cérebro.

Ali, o menino. Aquele de verde.

- Não, não. Eu já disse: não pode ser um menino.

O primeiro foi um menino.

- Mas agora é diferente.

Além do mais, meninos não dão bons anjos. Não servem.

Tudo bem. Uma menina, então?

- Isso, uma menina. Precisa ser loira. E de olhos azuis. Ou verdes. Mas azuis são melhores.

Vamos procurar.

Ele baixou o livro que fingia ler e recostou-se no banco. Naquela tarde, o playground à sua volta se encontrava tomado por risos. Crianças se agarravam às cordas dos balanços enquanto eram embaladas por mães e babás sorridentes, os joelhos juntos e os pés apontando para o alto como se quisessem chutar as nuvens. Rostinhos excitados e alegres congestionavam o escorregador. Meninos e meninas de, no máximo, três anos de idade, lotavam a caixa de areia e usavam pás e baldes para construir castelos. Uma mulher empurrava um carrinho de bebê, o neném lá dentro chutando o ar com pezinhos agitados cobertos por meias azuis. Trazia três balões vermelhos amarrados ao tornozelo direito.

Quando ele fechou os olhos e respirou fundo, conseguiu senti-los. O cheiro do suor em seus pequenos corpos ainda em formação, da curiosidade incansável em seus corações, do mijo nas fraldas. Do novo. Tudo para eles era uma descoberta. O mundo era um quadro em branco esperando para ser pintado. O aroma das possibilidades sem fim. Do futuro. De vidas que se descortinavam. Tão imaculadas. Tão puras. Tão frágeis.

Creck, creck, creck.

Urrou. Levou a mão fechada em punho à cabeça e bateu três vezes na testa suada. Toc-toc-toc. Silêncio aí dentro. Preciso pensar.

Uma bola de futebol rolou até seus pés. Ele agachou-se e pegou-a. Quem chutara fora o tal menino de verde, que agora vinha até ele correndo, os cachos negros subindo e descendo, sedosos daquela maneira que apenas os cabelos de crianças conseguem ser.

- Desculpe! – disse o menino. Faltava um dente de leite em sua boca, a falha criando uma pequena janelinha quadrada em seu sorriso.

- Não tem problema – ele disse. – Vou jogar de volta, está bem? Prepare-se.

Jogou. O menino de verde saiu correndo atrás da bola, agradecendo a ele com um aceno apressado. Eles estavam sempre apressados. Como se fossem pacientes de um câncer terminal, e não crianças com todo o tempo do mundo pela frente. Claro: o relógio iria parar antes da hora para alguns deles. Um acidente de carro. Um tumor. Uma bolinha de gude engolida e entalada na garganta. Mas não importava.

Todos eles, cedo ou tarde, virariam anjos.

Ali. Na casinha.

Ela ficava no canto direito do playground, ao lado dos balanços. Era rosa, com telhas amarelas e uma porta branca repleta de pequenas mãozinhas de tinta feitas pelas crianças. Flores repousavam nos parapeitos das janelas em pequenos vasinhos. A casinha geralmente era o brinquedo favorito das meninas, que se reuniam com suas amigas para servir chá aos seus ursinhos de pelúcia, longe de todos os garotos idiotas que só sabiam correr e feder a suor azedo. Naquela tarde, o lugar estava cheio de garotinhas com vestidinhos de renda e sapatilhas de princesas da Disney. Quando a viu, ele não pôde conter um suspiro de admiração.

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