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Sophia nunca voltou para os pais ou para casa. Não se lembrava de sua família, amigos ou do lugar onde morava – todo o período antes de Miranda encontrá-la era como um trecho de filme queimado em sua memória, e isso Miranda considerou uma espécie de bênção. Era melhor que o passado dela continuasse enterrado bem fundo, nos confins insondáveis de sua mente. O que quer que vivesse nele era ruim, e você não precisava ser um gênio para saber disso. Bastava olhar os hematomas nas pernas de Sophia, os cortes em seus pulsos e aquelas horríveis marcas em suas costas que lembravam chibatadas.

A única coisa que a garota conseguiu dizer com certeza para o policial na manhã depois de chegar ao convento foi seu nome.

- Sophia – ela murmurou. – Sophia Manning.

- Manning – o policial rabiscou o sobrenome em seu bloquinho de anotações, pronunciando devagar cada sílaba. – Como Archie Manning, o quarterback?

Sophia encarou-o sem dizer nada. Sentava-se comportada na cadeira do escritório da madre Deborah, usando um dos vestidos azuis de verão de Pietra, as perninhas curtas demais para que ela alcançasse o chão balançando no ar. A garota lançou um rápido olhar para Miranda, que mordia as unhas perto da janela.

- Tá, okay – o policial fechou seu bloquinho e deu um sorriso para Sophia. – Acabamos aqui, docinho de coco. Obrigado.

Miranda adiantou-se e agarrou a mão de Sophia. A garota pulou para o chão, sem nunca desgrudar os grandes olhos verdes do rosto do oficial Cohen.

- Vou precisar fazer algumas perguntas a você, irmã – disse o policial.

- Eu sei. Vou só levá-la lá para dentro e já volto, tá bem?

O policial assentiu, agarrando o cinto e subindo a calça do uniforme quase até o umbigo, e Miranda deixou-o sozinho com madre Deborah. Levou Sophia ao refeitório do convento que, naquela manhã, cheirava a bolo de fubá, pão quente com manteiga e café fresco. Pietra sentava-se no colo de uma das irmãs, ambas em frente à televisão que ficava em um suporte acoplado à parede, assistindo ao jornal matinal.

- Pietra? – chamou Miranda ao ver a filha. – Pietra, venha cá.

Miranda parou no meio do refeitório, de mãos dadas com Sophia, e esperou Pietra saltar do colo da irmã Jude e correr até elas. Ajoelhou-se e abriu os braços, e a filha pulou em cima dela com ímpeto suficiente para quase derrubá-la de costas.

- Bom dia, mamãe.

- Bom dia, meu amor. Dormiu bem?

- Uhum – ela olhou para Sophia. – Quem é ela?

Sophia assistia à cena em silêncio. Mordiscava o lábio inferior e abraçava a si mesma, do modo como abraçara os joelhos no interior sujo daquele abrigo de ônibus, fechando-se feito uma tartaruga em seu casco. O gesto fazia com que ela perdesse uns bons três centímetros de altura – e, para alguém minúscula como a garotinha, isso era muita coisa.

Vê-la desaparecer daquela forma fez o coração de Miranda doer.

- Essa aqui é a Sophia – disse Miranda. – Ela chegou ontem à noite e vai ficar com a gente... por um tempo. Diga oi.

- Oi – Pietra franziu a testa para Sophia. Olhava-a como se ela fosse um animal exótico em um zoológico. Pietra era nova demais para entrar na escola e, embora Miranda a levasse para o parquinho ou à praia sempre que possível, ela passava a maior parte do tempo com as irmãs do convento. O que significava que Pietra não estava acostumada a ter outras crianças por perto. Muito menos outras crianças da sua idade.

- Leve-a para brincar, Pietra – disse Miranda. – Mostre o lugar para ela.

Hesitante, Pietra estendeu os dedos, segurou e apertou a mão de Sophia, que não respondeu ao gesto, mas também não recuou. Paradas lado a lado, elas pareciam a materialização em carne e osso da palavra "oposto": Sophia era pálida a ponto de sua pele deixar evidente os entrelaçados roxos e esverdeados das veias, e Pietra tinha a cor da mãe, morena como chocolate ao leite. Pietra vibrava com a força da infância – era o tipo de criança que passava a impressão de beber nitroglicerina no café-da-manhã. E Sophia continuava a se encolher mais e mais, como uma planta dormideira quando tocada.

- Do que você gosta de brincar? – perguntou Pietra.

Sophia baixou os olhos para os pés, agora cheios de band-aids. Miranda cuidara de suas bolhas na noite anterior.

- Não sei – ela deu de ombros.

- Mamãe comprou pra mim um estojo novo de lápis de cor. Você gosta de desenhar?

O rosto de Sophia iluminou-se de imediato. As palavras apertaram algum botão de ligar dentro dela: seus olhos acenderam e dobraram de tamanho – se é que podiam ficar maiores –, e Sophia saiu de seu casco, ganhando de volta os centímetros que perdera.

- Gosto. Gosto sim.

Miranda sorriu, pensando consigo mesma que elas se dariam bem. Pobre mulher. Ela não tinha como saber que, ao apresentar a filha à garotinha de olhos verdes, condenara ambas à danação.

***

Quando voltou ao escritório da madre, Miranda encontrou uma mulher que nunca vira antes conversando baixinho com Deborah e com o oficial Cohen. Ela usava um terninho marrom de segunda-mão e consultava o relógio de pulso de uma maneira quase compulsiva.

- Roberta Franco, assistente social – ela se apresentou e estendeu a mão. Ao apertá-la, Miranda sentiu na palma da mulher os restos gosmentos de um creme de pele. – Estamos prontos para escutar você, irmã.

Miranda sentou-se à mesa e contou ao policial e à assistente social tudo o que acontecera na noite anterior. Eles ouviram sem interrompê-la, o oficial Cohen rabiscando em seu bloquinho e a mulher consultando o relógio de cinco em cinco segundos. Miranda teve vontade de mandá-la parar com aquilo, de perguntar se ela tinha algo mais importante para fazer, alguma coisa que a ajudasse a comprar ternos melhores, por exemplo, mas se conteve.

- É normal que a criança bloqueie memórias de violência – disse a assistente social quando Miranda terminou de falar. – É como um mecanismo de defesa, muito comum também entre os adultos que sofreram grandes traumas.

- Certo – disse o oficial Cohen. – É mesmo muito comum – Miranda perguntou-se porque ele não dissera aquilo antes já que entendia tanto do assunto e, novamente, mordeu a língua.

- Vou precisar falar com ela – a assistente social levantou-se. – Conhecê-la melhor.

- Ela está com minha filha – Miranda olhou para madre Deborah, que ficara em silêncio o tempo todo, e continuou: – Acho que elas estão no refeitório.

- Se essa garota estiver mesmo machucada como você diz, então temos que encontrar os pais ou responsáveis por ela o mais rápido possível. Eles vão precisar responder a algumas perguntas bem sérias – disse a assistente social.

- Pode apostar – disse o oficial Cohen.

Do outro lado da mesa, madre Deborah olhava para Miranda com o rosto impassível e as sobrancelhas levemente arqueadas. Em seu silêncio pairava a mesma pergunta que ela fizera na noite passada: No que foi que você nos meteu?

Todos os esforços da polícia para encontrar os pais ou responsáveis de Sophia Manning deram em nada: a menina simplesmente não possuía um passado. Além daqueles ferimentos e marcas, ela era uma tela em branco com um grande ponto de interrogação desenhado no centro. Acionaram o Sistema de Proteção à Criança e, enquanto seu nome circulava pelo sistema, Sophia morou com as irmãs do convento de Nossa Senhora do Sagrado Coração.

Viveu em paz com elas por quase dois meses. Até que vieram buscá-la.


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