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Entardecia quando Bernard Chapman saiu da casa de Justin Pullman. O céu havia sido tingido de dourado e as nuvens deixavam vazar de suas barrigas de algodão os últimos raios de sol, pintando tudo com um laranja quente e aconchegante. Um belo fim para um dia cansativo. Falar de Fallpound fora mais difícil e estressante do que Chapman imaginara, em parte porque ele precisava ficar se politizando o tempo todo para contar a história que combinara com Yuri Watson e Norman Grimmes e não dar com a língua entre os dentes falando demais, mas principalmente porque as lembranças vieram com um ímpeto desconcertante. Ele achou que se preparara o suficiente para abrir com segurança aquela Caixa de Pandora dentro de sua cabeça, mas estava errado. Assim que ergueu um pouquinho a tampa, a enchente chamada Passado, aquela força da natureza terrível e incontrolável, jorrou para fora, destruindo todos os deques e barreiras que Chapman construíra em sua mente e coração. Ele não pôde fazer nada enquanto era inundado por recordações, tantas que ele achou que vazariam por seus poros. E deviam ter vazado mesmo, porque agora ele as sentia deslizando por sua pele, grudadas nele como sanguessugas gordas, grandes e nojentas, pequenas vampiras que sugavam seu sangue e injetavam anestesia em sua corrente sanguínea.

Mas, mesmo anestesiado, cansado e ansioso para chegar em casa e jantar em paz com sua esposa, Chapman notou como o fim do dia parecia bonito. Enfiou as mãos nos bolsos do terno e caminhou até seu carro, estacionado no final da ruazinha tranquila na qual Pullman morava. As árvores nas calçadas farfalhavam, sussurrando entre si, fazendo-o pensar em outras árvores em uma floresta escura e fria longe dali, onde uma vez tambores rufaram e monstros saíram dos armários e deslizaram de debaixo das camas. Como sempre acontecia, Sophia surgiu na mente dele sem aviso, e ele não fez nenhuma tentativa de afastá-la. Conhecia bem o bastante este tipo de saudade para saber que, quanto mais lutasse contra ela, mais apanharia. Era o tipo de saudade que faz você beijar a lona. Então Chapman deixou Sophia vaguear por sua cabeça, pensando em como a garota teria odiado ficar a tarde inteira com a bunda na cadeira e sendo entrevistada por um escritor.

A primeira coisa que Chapman fez ao entrar no carro foi ligar para Yuri Watson. Seu amigo atendeu no segundo toque.

- Chapman? – disse Watson.

- Oi – ele escutava uma cacofonia de sons ao fundo: buzinas, roncos de motores e sirenes. – Está tudo bem?

- Não consigo escutar você. Espere um instante.

Chapman esperou, batucando no couro do volante com a mão que não segurava o celular. Cerca de um minuto depois, Watson voltou a falar do outro lado da linha, dessa vez com uma nitidez bem maior.

- Oi, Chapman?

- Está tudo bem? – Chapman repetiu. – Escutei sirenes.

- Está, sim. Não se preocupe.

- Você está em um caso? – Chapman empertigou-se atrás do volante. Ele não fora notificado de nada. – É sábado.

- Você me deixou de plantão hoje, esqueceu? – respondeu Watson. – E obrigado por isso, aliás. Estou tendo um final de semana formidável.

- O que aconteceu?

- Não sabemos ainda – disse Watson. – Alguma coisa com um homicídio de uma família em New Shore. Estou indo para lá agora.

New Shore. Sophia crescera em um convento por lá. Pelo visto, as surpresas do passado ainda não tinham terminado.

- Certo – disse Chapman. – Mantenha-me informado.

- Pode deixar – uma pausa. – Por que você ligou?

- Acabei de conversar com o tal do Pullman – disse Chapman.

- E... – quando Pullman ligara para Watson, pedindo que se encontrassem para conversar, Watson falara antes com Chapman. Haviam repassado juntos toda a história. Claro que ambos podiam ter se recusado a abrir a boca, mas por quê? Uma cortina de fumaça sempre levanta suspeitas, e permanecer calado sobre Fallpound seria o mesmo que atiçar novamente a curiosidade dos jornalistas. – O que você disse?

- O mesmo que você, espero – disse Chapman. – Não contei nada sobre as coisas que Sophia faz – assim como Watson, Chapman sabia. – Diga-me apenas uma coisa: quando falou com você, ele insistiu sobre Oldwheel?

Silêncio por um segundo. E então:

- Insistiu. Ele foi um pé no saco sobre Oldwheel – respondeu Watson. – Acha que ele sabe de alguma coisa?

- Desconfia, no mínimo – respondeu Chapman.

- Bom, isso não é nosso problema. Harvey disse que vai encobrir tudo – Watson falou. – Ei, Chapman?

- Sim?

- Ela entrou em contato com você?

Chapman suspirou, fechando os dedos com ainda mais força no volante.

- Não – ele disse. – Nada.

- Espero que ela esteja bem, sabe – disse Watson. – Ultimamente, ela vem passando um tempo maior que o habitual dentro da minha cabeça. Penso nela direto.

- Eu também – Chapman notou a ronquidão em sua voz e desejou que isso tivesse passado despercebido para Watson. – Vou deixar você trabalhar. Quando tiver alguma novidade sobre New Shore, me avise.

- É, pode deixar – disse Watson.

Desligaram. O céu tinha passado do dourado da tarde para o arroxeado que antecede o anoitecer. As nuvens, agora com um tom violeta-avermelhado de hematoma, desapareciam, dando lugar às estrelas que brilhavam tímidas aqui e ali. Enquanto olhava para elas através do para-brisa do carro, a cabeça de Chapman voltou no tempo uma semana, para Oldwheel.

Não, as surpresas do passado ainda não tinham terminado.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora