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A garotinha agachou-se ao lado dela. Colocou a mão em seu ombro, e seu toque era quente. Sophia sentiu o calor da pele da criança, mesmo com aquela entorpecência espalhando-se por seus braços, pernas e cabeça, parecendo nocautear cada um de seus neurônios e assassinar seus nervos sensoriais.

- Ele vem vindo – disse a garotinha. – A gente precisa ficar de pé e lutar.

E Sophia, que nunca fugira de uma luta na vida, balançou a cabeça o máximo que o peso da bola de ferro no interior de seu crânio permitiu.

- Não dá – ela disse. – Não consigo ficar de pé. Não consigo fazer nada.

Abatida. Ela estava abatida.

- Ele vai enfiar agulhas na gente de novo – disse a garotinha. – Por favor, não deixa ele fazer isso.

Arfando – até respirar era difícil, como se seus pulmões estivessem cheios de cimento – Sophia virou o rosto um pouquinho para o lado e encarou a garotinha de vestido branco e laço vermelho em torno da cintura. Ela segurava um coelhinho rosa de pelúcia contra o peito, e seus cabelos pretinhos como uma noite sem estrelas chicoteavam para trás enquanto o vento das hélices os atingia. Constelações de sardas pontilhavam suas bochechas e nariz, e ela tinha olhos verdes.

Olhos que Sophia já vira incontáveis vezes refletidos em um espelho.

- Não deixa ele machucar a gente – disse a garotinha. Lágrimas brotavam de seus imensos olhos e escorriam por suas bochechas pálidas. – Levanta, anda.

Ela queria, mas havia todo aquele peso, aquelas toneladas em seus braços, pernas e costas, e agora Sophia pingava suor enquanto tentava alçar o corpo para cima. A garotinha viu a luta dela e colocou-se à sua frente. Estendeu a mão. Seu pulso tinha marcas de cortes, cicatrizes esbranquiçadas, outras vermelhas e inflamadas. Sophia olhou para os dedos dela e agarrou-os.

A menina puxou-a para cima, e Sophia conseguiu ficar de pé. Pelo menos, dentro de sua cabeça ela se via de pé: ali, na grama, ela continuava de joelhos à margem do lago, escutando as hélices batendo sem parar. Descobriu, no entanto, que agora conseguia erguer o rosto. Mais do que isso, era capaz também de levantar o braço.

- Você está indo bem – disse a garotinha. – Continue.

- Eu não tentaria nada se fosse você, Sophia – disse Aiden Harvey. Sophia levantou a cabeça e viu-o caminhando devagar na sua direção, a mão esquerda fechada em uma pistola. – Não quero machucar você mais do que o necessário.

Mentiroso. Você sempre me machucou mais do que o necessário.

Trincou os dentes e ergueu o braço esquerdo. O membro levantou-se devagar, como se os circuitos responsáveis por levar até ele os comandos do cérebro estivessem queimados. Sophia achou que estavam mesmo, mas isso não a impediu. Abriu a mão e apontou a palma para Harvey. Ele parou no meio de um passo, o sorriso vacilou em seu rosto. Os homens vestidos de negro com coletes da Divisão também estancaram.

- Estou avisando você – disse Harvey. Então apontou a arma para ela. – Vai ser melhor se você ficar quietinha como uma boa menina.

Ah, Harvey, você ainda não entendeu? Eu sou uma menina má. Então, ela sentiu. O Poder. Aquela coisa que habitava uma caverna no fundo de suas entranhas e que arranhava e mordia para sair, a força que Aiden Harvey tentara a vida toda controlar, mas que jamais fora capaz de sequer começar a compreender.

Sentiu o Poder. Sentiu-o na ponta de seus dedos, na palma de sua mão.

Você quer isso, Harvey? Então tome. Tome tudo.

E soltou, disparou aquele pensamento cheio de raiva, ódio e medo. Ele partiu de sua mão como um míssil feito de pura energia destrutiva, embora ninguém conseguisse vê-lo, nem mesmo Sophia. Harvey ergueu a pistola um segundo depois de Sophia arremessar a mente na direção dele, e tudo o que se seguiu aconteceu rápido demais.

Nunca foi a intenção dela atingir o helicóptero. Seu alvo era Harvey – e, dada a força com que projetara o pensamento, ela iria reduzi-lo a um saco de carne dilacerada e ossos quebrados caso tivesse acertado a mira. Só que Sophia errou. No último instante, antes de transformar a mente em um projétil e dispará-la com toda raiva que conseguiu reunir, seus joelhos cederam à droga que Harvey injetara em seu organismo e Sophia despencou para frente. Caiu de cara na grama molhada ao mesmo tempo em que escutava a explosão.

Foi um barulho ensurdecedor, mais alto do que qualquer coisa que ela já escutara até então, como se um trovão estourasse dentro de sua cabeça. Houve um flash vermelho que atravessou suas pálpebras fechadas, e então o mundo inteiro pareceu se transformar em um forno. Um golpe de calor a atingiu e, por um instante desesperador, Sophia achou que seus pulmões tivessem sido substituídos por chapas quentes, porque tudo o que conseguiu puxar para o peito foi uma porção de ar fervente.

Quando tornou a abrir as pálpebras, o mundo queimava. Uma luz laranja e quente tomava conta de tudo, e cortinas de fogo dançavam contra o céu nublado, lançando às nuvens torres negras de fumaça. Sophia tossiu. Seu peito e seus olhos ardiam. Ela ergueu um pouco a cabeça da grama, cuspiu uma porção de terra e fitou o que sobrara do helicóptero. Nada além de uma carcaça carbonizada, montes de aço retorcido e metal triturado. A cauda da aeronave estava cravada no solo como um mastro de bandeira, apontando para cima, e Sophia viu um homem com um colete que dizia DVS pendurado em sua ponta; ele tinha sido empalado e se contorcia para se libertar da viga que se projetava do seu peito, agarrando-a com as duas mãos enquanto gritava por socorro. Havia gritos também à esquerda dela, berros de porcos em um matadouro, e a garota virou o rosto na direção dos sons. Viu um agente se arrastando no chão. Ou melhor: metade de um agente. Uma das hélices o cortara ao meio, e ele rastejava usando apenas as mãos, agarrando montes de grama com seus dedos cheios de sangue. Deixava atrás de si uma trilha suja e escura de tripas, os intestinos espalhando-se como um ninho de cobras gordas. Ele parou, virou de costas e começou a empurrar as próprias entranhas para dentro, chorando e chamando por uma mulher chamada Grace. Não muito longe de onde ele agonizava, estava o restante de seu corpo. Uma das pernas ainda se mexia, chutando o ar, como se quisesse levantar e sair correndo dali.

Sophia desviou os olhos do agente que morria e procurou por Harvey. Cinzas choviam em seu rosto, tornando cada vez mais difícil enxergar, mas a garota conseguiu discernir a silhueta de seu ex-chefe: lá estava ele, ainda vivo, lutando para se levantar do chão, o terno chamuscado soltando tiras de fumaça e com sangue cobrindo-lhe a face esquerda. Ela queria atacá-lo outra vez, mas toda sua energia tinha sido drenada. Sophia era agora um saco vazio de vontade ou força, prestes a cair na inconsciência. Harvey colocou-se de pé sem que ela pudesse fazer qualquer coisa para impedir.

Ele a viu caída na grama e começou a mancar na direção dela, arrastando atrás de si a perna direita. Não era sangue em seu rosto, mas sim um naco de pele pendurada: seu couro cabeludo fora rasgado no lado esquerdo e agora balançava contra sua bochecha como uma cortina de carne. Harvey gritou algo para Sophia, mas o zumbido em seus ouvidos, causado pelo barulho da explosão, não deixou que a garota escutasse as palavras.

Sem forças para se levantar, sentindo a droga espalhar uma letargia por seu corpo e paralisar seu cérebro, Sophia apalpou debilmente em volta, procurando a .380, até que um sapato desceu sobre seus dedos esquerdos. Harvey pisou em sua mão e apertou. Ela escutou os ossos estalarem – clack, clack, clack! – mas não houve dor. A Sufentanila em seu organismo a anestesiava. Ergueu os olhos para o rosto devastado de Harvey: a falha em seu couro cabeludo deixava à mostra o branco do crânio. Ele apontava a arma para ela.

- Vai me matar, Harvey? – apesar de tudo, Sophia conseguiu sorrir para ele.

Com a aba de pele lhe tampando a face esquerda, Harvey parecia ter apenas um olho: uma esfera insana e brilhante que refletia o laranja das chamas. A luz do incêndio também acentuava as rugas em seu rosto, transformando-as em riachos de sombras.

- Vá em frente, seu covarde de merda.

Não precisava falar duas vezes.

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