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Por volta do meio-dia, Lou Campbell desembarcou no St. Peterson New Shore Airport. O movimento no lugar estava baixo, com apenas algumas poucas pessoas passando apressadas com fones no ouvido, celulares nas mãos, mochilas nas costas ou arrastando malas de rodinha. Uma voz mecânica de mulher anunciava os voos e as condições do clima. Aparentemente, chovia no mundo inteiro.

Lou fez uma rápida pausa para tomar um cafezinho e comer um sanduíche – saíra tão apressado do prédio do Punho que sequer tivera tempo de beliscar um lanche. Debaixo do braço, trazia uma pasta parda cuja capa anunciava: Projeto Carrie. Espécime 0002. Era a única coisa que ele trouxera consigo; não levara mochila, roupas nem nada assim porque não planejava ficar muito tempo. Se Deus quisesse, estaria em casa antes do jantar, com a garota já neutralizada e a sensação de dever cumprido.

- Horrível, não é mesmo? – disse um jovem ao lado dele no balcão do café.

- Desculpe? – Lou baixou sua xícara e virou-se para o garoto. Ele usava uma jaqueta jeans, viajava com um violão e era difícil dizer o que ocupava mais espaço em seu rosto: a barba ou o cabelo. – O que disse?

- Isso aí – o jovem apontou para a televisão. Lou olhou e viu as imagens de um incêndio e, na parte inferior da tela, a legenda: "Dias de terror em New Shore: acidente de helicóptero na igreja da cidade". – Sério, cara: nunca dei muita bola para essa baboseira religiosa, mas acredito em Deus e no Diabo. E o que vem ocorrendo nessa cidade só pode ser coisa do Diabo. Primeiro os assassinatos e agora isso.

- Pois é – Lou se via incapaz de desviar os olhos das chamas que a televisão mostrava. – E agora isso.

O jovem suspirou, deixou uma nota de cinco no balcão e levantou-se.

- Por isso estou dando o fora daqui – ele jogou o violão nas costas e acenou. – Fique na paz, irmão.

- Você também, filho – Lou acenou de volta. – Você também.

Cinco minutos depois, Lou estava do lado de fora do aeroporto esperando por um táxi. Chuviscava, gotinhas geladas e afiadas que enchiam o saco, e ele desejou ter trazido um guarda-chuva. Viu um táxi branco se aproximando e ergueu a mão para o motorista parar, quando alguém colidiu com ele e derrubou-o para frente. Lou caiu de joelhos e a pasta do Espécime 0002 escapou de seus dedos.

- Oh, meu Deus, perdão – mãos fecharam-se em seus braços. – O senhor está bem? Machuquei você?

- Não, de forma alguma – era mentira. Ele sentia os joelhos ralados em cortes ardidos e o sangue quente brotar. Viu a pasta que trouxera consigo caída mais adiante na calçada e pegou-a. A foto da garota ainda criança tinha escapado um pouco para fora e ele empurrou-a de volta para dentro. – Não foi nada.

- Deixe-me ajudá-lo – disse a moça que trombara com ele.

Lou deixou que ela o ajudasse a ficar de pé. Era uma mulher bonita, de cabelos escuros e olhos um pouco puxados, talvez de descendência japonesa. Pela vermelhidão deles, Lou soube que ela chorara há pouco tempo. Chorara muito. Perguntou-se o que teria acontecido com ela, mas não levantou o questionamento. Não era problema seu.

- Obrigado – disse Lou.

- Desculpe-me mais uma vez. Geralmente eu sou bastante atenta, mas o dia hoje está sendo difícil.

O táxi parara, o motor ronronando impaciente. Um homem que Lou não notara até então – um rapaz alto e vestido, quem diria, com uma jaqueta escura do FBI – fez sinal para o motorista esperar.

- Senhora, podemos ir? – perguntou o agente para a mulher bonita.

- Vamos em outro, o táxi é dele – a mulher apontou para Lou.

- Por favor, podem ir – disse Lou. – Eu pego o próximo.

- Mas o senhor estava aqui primeiro. E eu te derrubei no chão.

Lou sorriu e balançou a cabeça. Apertava a pasta com força debaixo do braço.

- Eu insisto, senhora. Pode pegar esse táxi.

A mulher hesitou por um momento, incapaz de aceitar aquilo, mas por fim cedeu. Brindou Lou com um sorriso bonito e cheio de dentes, que nunca chegou a tocar seus olhos.

- Obrigada. Só vou aceitar porque estou mesmo com pressa para chegar ao hospital.

Lou ergueu as sobrancelhas. Não esperava por aquilo. Engraçado como o universo trabalha seu tabuleiro.

- A senhora vai para o Hospital Geral?

- Vou. Minha filha está lá.

- Ora, que ótimo – ele viu a expressão no rosto da mulher e corrigiu-se. – Quero dizer, sinto muito por sua filha estar no hospital, mas eu também estou indo para lá. O que me diz de dividirmos o táxi?

- Acho uma boa ideia, senhor...

- Campbell – Lou estendeu a mão e a mulher apertou-a. – Lou Campbell. E a senhora é...

- Lívia – ela não lhe deu um sobrenome. – Podemos sair da chuva?

Foram juntos até o táxi, o agente do FBI acompanhando-os de perto o tempo todo. Lou notou a pistola que ele trazia em um coldre preso ao cinto, e pensou em seu próprio revolver escondido por seu paletó. O peso da arma em sua cintura era-lhe estranho – há anos Lou deixara para trás o serviço de campo – mas ele ainda se lembrava de como usá-la. Lembrava-se muito bem.

***

Ele quase não viu a viatura.

Sentado no carona, dividido entre escutar o taxista tagarelar sem parar sobre os terríveis assassinatos que assolavam a cidade e olhar Lívia pelo retrovisor – a mulher não falara o percurso todo, mantendo-se em silêncio absoluto no banco de trás, ao lado do agente que viajava com ela – Lou por pouco não deixou que a garota lhe escapasse.

- ...mas eu vi o retrato dele essa manhã, na televisão, e posso dizer a vocês: estou de olho nessas ruas – dizia o taxista. – Se eu ver alguém que se pareça com o assassino, eu... Opa, chegamos.

O taxista estacionou, e Lou virou o rosto na direção do hospital que ficava do outro lado da rua. Neste instante a viatura passou por eles. Ninguém mais deu importância ao veículo, e por que dariam? Era só uma viatura de polícia normal fazendo sua patrulha. Espera-se algo assim em uma cidade onde um serial killer está a solto matando crianças. O próprio Lou a notou apenas por causa daqueles olhos atrás do volante. Olhos de gato. Ele já os vira antes, em uma foto dentro da pasta em seu colo.

- Sr. Campbell? – Lívia já descera do táxi e agora se agachava ao lado da janela do passageiro para falar com Lou. – Chegamos. O senhor não vem?

Incapaz de desviar os olhos da traseira da viatura que se distanciava devagar, Lou Campbell apenas balançou a cabeça.

- Lembrei que preciso fazer outra coisa primeiro, querida – disse Lou. – Pode ir. E deixe a conta comigo.

- Tem certeza? – Lívia parecia a Lou o tipo de mulher que protestaria veementemente diante da ideia de deixar um desconhecido pagar sua conta de táxi. Só a impaciência e a pressa a impediam de recusar a oferta.

- Tenho – a viatura virou a esquina e Lou ajeitou-se no banco. – E mande minhas lembranças à sua filha. Espero que ela fique bem.


A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora