A porta coberta de hera surgiu minutos depois.
Sophia quase passou reto por ela, sem notá-la, mas precisou parar para tomar ar. Correra à esmo, costurando seu caminho entre as estantes, tentando confundir a coisa que a perseguia, até não conseguir mais dar outro passo. Então apoiou os cotovelos nos joelhos, curvou-se para frente como se fosse vomitar e respirou fundo, esperando que os níveis de oxigênio em seu corpo voltassem ao normal. Nessa posição, ela olhou para o lado e, escondida entre duas estantes, Sophia viu uma porta de madeira escura, simplesmente flutuando ali, com uma maçaneta de ferro e coberta por uma cabeleira verde de heras.
Aquilo era novo.
A garota endireitou o corpo e deu um passo na direção da porta, e então o chão sob seus pés tremeu. A coisa se movia outra vez, embora não com o mesmo ímpeto de antes – não como um rolo compressor, passando por cima das estantes e derrubando-as na sua pressa de alcançar Sophia. Vinha com cautela, esgueirando-se e farejando, um predador ferido que se atirou faminto sobre sua caça acuada e só percebeu tarde demais que sua presa tinha um ferrão. Bom. Que aquela coisa sentisse medo.
EU VOU
- Me comer – completou Sophia. – Eu sei, eu sei. Troca o disco, querida. Se eu ganhasse um dólar por cada homem que já me ameaçou assim, eu estaria rica.
Sophia enfiou-se no espaço apertado entre as duas estantes e aproximou-se da porta que flutuava, depois bateu no monte de hera para tirá-lo da frente. Estendia a mão para a maçaneta quando o mundo girou. Não só para os lados, mas também para cima e para baixo, e ela perdeu toda a perspectiva de espaço. Parecia que seu próprio cérebro rodopiava dentro de seu crânio. Caiu no chão e fechou os olhos com força, esperando que a vertigem passasse.
É o seu corpo, boneca. O tempo passa diferente aqui, mais devagar, mas passa. Lá fora, ele ainda está estrangulando você. E, sinto dizer, o ar está acabando.
O ar acabava e a coisa se aproximava. Merda. Sophia colocou-se de pé, ainda sentindo o efeito daquela vertigem inesperada, apoiando-se em uma das estantes para não voltar a cair, e estendeu a mão trêmula para a porta. Esperava encontrá-la trancada, mas não: a maçaneta de ferro girou com facilidade, quase por vontade própria, como se quisesse ser aberta.
EU VOU ENCONTRAR VOCÊ, SUA PIRANHA. NÃO PODE SE ESCONDER DE MIM AQUI. AQUI É A MINHA CASA!
- Foda-se você – Sophia disse, e abriu a porta.
Sophia soube imediatamente onde se encontrava. Já estivera ali. A porta coberta de hera e suspensa entre as estantes não se abria para um lugar: se abria para uma memória. Sophia a visitara uma vez usando como meio de transporte o espelho no banheiro do apartamento de Chapman e Lívia, em Boston. Sentira um cheiro forte de feno, bosta e terra então, e sentia agora. O calor também continuava o mesmo: opressor, a temperatura do interior de uma estufa fechada que passou o dia debaixo do sol quente. Mas não era uma estufa, era um celeiro, com uma única janela lá no alto, por onde a luz do dia entrava em um raio quadriculado. Em algum lugar, cavalos resfolegavam e batiam seus cascos no chão, e galinhas gritavam.
Embora o lugar onde a memória se passasse fosse o mesmo, o quando era outro. Sophia caíra na lembrança em algum ponto anterior ao da última vez: de cócoras no centro do celeiro, de costas para Sophia e banhado pela luz do sol que entrava pela janela no alto, um menino de cabelos escuros e pele morena jogava sozinho bolinhas de gude. Usava uma regata vermelha, calção cáqui e sandálias. A garota não precisou ver o rosto dele para saber quem ele era.
O menino, que não podia ter mais do que seis anos, arrumou cinco bolinhas de gude em um triângulo no chão de terra do celeiro. Então pegou uma sexta bolinha e tomou um pouco de distância.
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A Voz da Escuridão.
Paranormal[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de Fallpound, no interior dos Estados Unidos: o primeiro de uma série de assassinatos que assolou a região em 2009, cometida por uma seita satâ...