Envolveu-a com seu paletó sujo e pegou-a no colo. Ela não se mexia, com exceção dos olhos, que rolaram e fixaram-se no rosto dele. Estavam vermelhas e irritadas, aquelas duas esferas verdes, talvez porque ela não conseguia piscar. A boca aberta expunha as fileiras de dentes pequenos. Ergueu-a, apertou-a contra o peito. Ela era leve, sempre fora. Disse-lhe que tudo ficaria bem e correu com ela nos braços, o corpo da garota sacolejando como uma marionete que teve as cordas cortadas. Atravessou com ela a parede de chamas e viu a mulher que a adotara e que cuidara dela como uma filha.
Colocou-a aos pés da velha freira e voltou para o interior do incêndio.
Não podia ficar muito mais tempo ali. O calor era tão abrasador que ele sentiu os sentidos falhando, mas ainda assim obrigou suas pernas cansadas a se moverem. Caminhou pelo mar de fumaça, punho fechado contra a boca e o nariz, e estancou ao ver o corpo do homem caído de rosto na grama, com uma única agulha vermelha de sangue despontando da nuca. Agachou-se, colocou os dedos no pescoço dele e, claro, não encontrou pulsação alguma. Então o agarrou pelos tornozelos e o arrastou até as chamas. Parou um instante, respirando fundo, perguntando a si mesmo se era capaz de fazer uma coisa daquelas. Até o dia anterior, achava que não. Mas ali estava: uma parte de si com a qual ele nunca deparara antes. Desejou não tê-la conhecido. Era feia. Vivia lá no fundo da alma, naquele poço escuro onde ficam as coisas que é melhor não cutucar, porque nem tudo o que se afogou está morto.
Pegou o corpo no colo, da mesma forma que levantara a garota, e atirou-o no fogo.
Não ficou para olhá-lo queimar. Estava feito, de qualquer forma. Se os bombeiros ou a polícia encontrassem o corpo de Aiden Harvey, ele estaria carbonizado. Causa da morte? Acidente de helicóptero. Horrível, é verdade. Mas acontece, certo?
Certo, concordou a coisa recém-despertada no poço da alma de Bernard Chapman.
Saiu outra vez do fogo e viu Miranda sentada ao lado de Sophia, passando a mão pelo rosto dela. Havia outras freiras ali, algumas de joelhos na grama e rezando, outras encarando o incêndio com os olhos arregalados e as bocas abertas. Terços balançavam em suas mãos, preces saíam de seus lábios. Como se palavras pudessem desfazer o que acontecera às margens daquele lago.
Chapman ajoelhou-se ao lado de Miranda e encarou Sophia. Os olhos da garota iam do rosto dele para o dela, bem devagar, tão vermelhos agora que pareciam cheios de sangue. Miranda virou para Chapman as faces molhadas de lágrimas.
- O que aconteceu com ela, Bernard? – ela perguntou. – Por que ela não se mexe?
Chapman balançou a cabeça.
- Não sei – ele disse. – Acho que Harvey injetou alguma coisa nela, mas não tenho certeza. Não sei, Miranda.
- Quem é Harvey?
- Não importa quem é Harvey – Chapman disse. Estendeu uma mão e acariciou os cabelos negros de Sophia.
- Ela vai ficar bem?
Não sei.
- Vai. Quando foi que ela não ficou?
Miranda assentiu e baixou o rosto de novo para Sophia. Pegou a mão flácida dela, e os dedos da garota não responderam ao aperto.
- O que vamos fazer? – perguntou Miranda para Chapman. – Não podemos deixá-la assim. Ela precisa de um médico.
Sophia arregalou os olhos. Apenas um pouco, um movimento de desespero quase imperceptível, mas Chapman o viu, e entendeu a mensagem muda da garota: nada de médicos.
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A Voz da Escuridão.
Paranormal[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de Fallpound, no interior dos Estados Unidos: o primeiro de uma série de assassinatos que assolou a região em 2009, cometida por uma seita satâ...