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            Sophia tinha sido sincera quando disse à pequena Eva Walker que não sabia se retornaria. Mas ficou feliz ao descobrir que aquela velha e astuta Roda, aquela que, cedo ou tarde, leva a todos nós de volta ao começo, às vezes também nos leva de volta aos bons momentos. A lugares que podemos chamar de lar. Cantos de paz. Durante o giro lento e implacável da Roda, você depara com a felicidade em tantas ocasiões diferentes que apenas os seriamente senis ou irremediavelmente amargurados chegam ao final da jornada alardeando que a vida não vale a pena. Eles não sabem ou não querem enxergar que tudo o que você tem que fazer é ser corajoso e verdadeiro, perseverar e segurar firme durante as partes mais escuras e turbulentas do rodopio até que a curva seguinte traga a luz. E a luz sempre vem.

Exatamente um mês depois de abandonar os Walker com nada além de um bilhete que continha as duas palavras mais controversas já inventadas pela humanidade – sinto muito – Sophia se viu outra vez parada entre os pinheiros cobertos de neve, escutando uma coruja piar, sentindo o cheiro de café com torradas e manteiga que saía pela janela da cozinha da casa. Havia um cachorrinho também, uma coisinha preta e pequena que latia na varanda, arranhando a porta e querendo entrar, e ele era novo. Mas todo o resto continuava o mesmo.

- Eva! – a voz de Lizzy saiu pela janela aberta, flutuando para o céu junto com o cheiro do café-da-manhã. Sophia pôde imaginá-la na cozinha, o cabelo cor de palha amarrado em tranças até a cintura, as bochechas cheias de sardas coradas pelo sol da manhã e usando um vestido verde de verão. – Dê um jeito naquele cachorro ou eu vou entregá-lo para o Homem do Saco!

- Deixa ele em paz, mamãe!

- Vou deixá-lo em paz quando ele me deixar em paz!

O cachorrinho dobrara o volume dos latidos ao escutar a voz de Lizzy, e passara a latir à quarta potência quando ouviu Eva gritar. Agora ele se atirava contra a porta da varanda aos pulos, suas patinhas chegando a se elevar quase um metro do chão, as unhas arranhando o piso e a madeira. Sophia escutou os passos de Eva e teve certeza de que a garotinha usava seu par de sapatilhas de dança. Só ele produzia aquele tac-tac-tac que lembrava um relógio com o ponteiro do tic! quebrado.

- Logan! – a cabeleira dourada de Eva ficou visível através da tela da janela da porta. – Mamãe mandou você parar com o barulho ou ela vai te dar para o Homem do Saco.

Logan latiu bravamente contra a ameaça e a maçaneta da porta girou. A pequena Eva saiu para a varanda, seu cabelo loiro quase branco à luz do sol da manhã. Vestia só uma camisola azul e usava mesmo as sapatilhas de dança. Eram vermelhas, iguais às da Dorothy. Você precisa bater uma na outra para ir para Oz, Sophia uma vez explicara para Eva.

- Logan – Eva debruçou-se e pegou o cachorrinho no colo. Ele lambeu a bochecha dela. – Você tem que parar de...

E então seus olhos claros caíram em Sophia, de pé no fim da estrada que levava à varanda, e ficaram tão grandes que Sophia temeu vê-los pular para fora do crânio da garotinha como brinquedos de mola. Sophia deu um passo na direção dela, e a boca de Eva abriu-se enquanto seu peito se enchia. Parecia uma mergulhadora tomando fôlego, e fazia exatamente isso, mas não para nadar: tomou fôlego para gritar, um som tão estridente que o cachorrinho em seu colo ganiu e saltou de seus braços.

Sophia não soube dizer se ela própria gritou ou não. Achou que sim, mas não tinha certeza: seu mundo se resumira à garotinha que disparava pela estradinha na sua direção, e todo o resto perdera a importância. Soube que seu coração gritou – pôde ouvi-lo e senti-lo dar pulos em seu peito, e então Sophia ajoelhou-se no chão e abriu bem os braços. Eva também estendeu os dela e saltou os últimos três metros que a separavam de Sophia.

Sophia a pegou. Como sempre fizera e sempre faria. Envolveu-a nos braços, desejando ter duas mãos para senti-la melhor, ergueu-a do chão e girou-a. O cachorrinho latia e dava pulinhos à volta delas, balançando o rabinho escuro para lá e para cá.

- Sophiasophiasophiasophiasophia – repetia Eva sem parar de encontro ao pescoço dela.

- Estou aqui, meu amor. Estou aqui.

- Eva? – Lizzy saiu na varanda. – Pelo amor de Deus, o que é que...

Lizzy viu Sophia e parou de supetão na soleira da porta. Levou as mãos à boca e seus olhos se arregalaram em uma imitação perfeita dos da filha. Depois, ficaram cheios de lágrimas, e mesmo à distância Sophia pôde vê-los marejar... Ou talvez fossem seus próprios olhos, também embaçados. Sorriu para a garota que um dia cantara para ela dormir e soprou-lhe um beijo.

Na curva do seu pescoço, a pequena Eva continuava a dizer seu nome. Aos seus pés, o cachorrinho ainda dava pulos e latia. Sophia ajeitou a garotinha em seus braços e caminhou na direção da casa dos Walker, e viu quando Josh surgiu à porta e envolveu os ombros da filha com um dos seus enormes e musculosos braços. Ele usava uma de suas camisas de flanela e fumava um cigarro de palha.

- Chegou bem na hora do café-da-manhã! – ele gritou para Sophia.

O coração de Sophia ficou tão grande em seu peito que ela precisou parar de andar por um momento. Olhou para Josh e Lizzy esperando por ela na varanda e pensou em algo que Benny lhe dissera certa vez, enquanto eles se escondiam entre as árvores próximas daquela casa onde morava um monstro de olhos amarelos.

- Eu encontrei, Benny – ela disse.

- O que foi? – Eva falou contra a curva de seu pescoço.

- Nada, querida. Estou só falando com um bom amigo meu.

Então beija o topo dourado da cabeça da pequena Eva, enterra o rosto nos cabelos dela e repete bem baixinho:

- Eu encontrei.

Um cantinho de paz.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora