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Assim que acordou na segunda-feira de manhã, Sophia foi para a sala do apartamento e deparou com uma tela de pintar colocada ao lado da janela. Ficou sem reação, parada ali só de camisola feito uma idiota, sua mente ainda sonolenta sem entender o que eram todos aqueles pincéis e tintas. Havia até mesmo um banquinho de três pernas para o artista sentar enquanto trabalhava. Então as lembranças vieram e Sophia soltou um gritinho de alegria. Não conseguiu evitar.

- Livy! – ela chamou, correu meio caminho até a tela de pintura, depois voltou e enfiou-se na cozinha, onde Lívia sentava-se à mesa e comia bolinhos. – Livy, Livy!

- Pelo amor de Deus, estou aqui – disse Lívia, baixando o jornal que lia. – Pode parar de gritar meu nome.

- Livy! – Sophia gritou mesmo assim. – Aquilo ali na sala é o que eu estou pensando?

- É a sua tela de pintura, sim – Lívia franziu a testa. – Por que o alvoroço? Eu...

Sophia calou-a atirando-se em cima dela, quase a derrubando com cadeira e tudo. Lívia ficou perdida entre abraçar a garota e equilibrar-se para não cair.

- Obrigada por guardar – disse Sophia.

Aquelas telas, com os pincéis, tintas e o cavalete, haviam sido presentes de Lívia e Chapman para ela. A garota os ganhara assim que se mudara para Boston. Chapman, claro, sabia o quanto ela amava desenhar, e Sophia nunca se esqueceria da noite chuvosa em que ele a pegara no convento e a levara para morar em seu apartamento. Assim que chegara, pingando água no tapete da entrada e tremendo de frio, enfiada dentro do casaco gigantesco de Chapman e com o humor mais sombrio que o normal, Sophia encontrara aquele pequeno estúdio de pintor montado no mesmo lugar dessa manhã: próximo à janela, sobre uma lona branca para impedir que o piso ficasse sujo de tinta. Como acontecera ainda há pouco, ela também ficara paralisada na época, sem entender direito o que via.

- Eu sei que você já deixou para trás a época de desenhar coelhinhos – dissera Chapman –, mas achei que você fosse gostar de ter um espaço para pintar outras coisas.

Ah, e como ela tinha gostado. Nos anos em que morou com Chapman e Lívia, ela passou tardes e madrugadas inteiras sentada no banquinho de três pernas, desenhando quase alucinadamente. Se não estava estudando, desenhava. Se não estava na Sede, desenhava. Se não estava dormindo, desenhava. O tempo mais longo que Sophia ficou sem pegar no pincel foi o período em que enfrentou problemas com drogas, mas a pintura a ajudou a vencer o vício e as terríveis crises de abstinência. Toda arte criativa é uma mágica singular; se a medicina é responsável por curar as feridas do corpo, então a imaginação cura as feridas da alma e do coração. Nunca ocorreu a Sophia perguntar a Chapman e Lívia que fim eles haviam dado às toneladas de desenhos que ela fizera durante aquela época.

Sophia soltou Lívia e correu para a sala, mas parou quando a mulher gritou para a garota, pelo menos, tomar café da manhã. A excitação de Sophia permitiu-a agarrar três bolinhos e devorá-los um atrás do outro, quase sem pausa, e depois empurrar tudo para dentro com um grande gole de suco de laranja.

- Se eu soubesse que você ficaria tão animada, teria colocado aquela tela lá antes – riu Lívia, incapaz de se conter diante da animação da garota.

- Você é demais, Livy – Sophia estalou um beijo no rosto dela e voltou para a sala.

É desnecessário dizer que a garota ficou a manhã toda com a bunda sentada no banquinho, desenhando em um ritmo que deixaria qualquer observador tonto. E ela nem estava dando tudo de si. Na realidade, sentia-se meio enferrujada – fazia um bom tempo desde que pegara em um pincel, o que a impedia de pintar a todo vapor. Mas, no fundo, era como andar de bicicleta: você nunca se esquece de verdade daquilo que ama. Enquanto adicionava traços, linhas, cores e formas às telas, criando todo um novo mundo a partir do branco, sem usar nada além das mãos e da imaginação, Sophia sentia-se voando. Um pássaro, ela pensou, devia se sentir exatamente assim ao bater as asas depois de passar um tempo longo demais preso em uma gaiola.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora