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A terça-feira amanheceu quente.

Bernard Chapman saiu do Days Inn New Shore para um dia abafado e melado. Tinha a sensação de se mover dentro de uma bolha de água grudada a uma chaleira fervendo. Algo parecia prestes a explodir. O céu era como uma chapa de metal aquecida pelo sol que, mesmo às 7 da manhã, já se erguia alto e brilhante. Não havia uma nuvem sequer lá em cima, o que emprestava ao firmamento um aspecto liso. Daria para esquiar com patins em um céu daqueles, fosse lá o que isso significasse. Seu tom imaculado e azul-claro fez Chapman pensar nos olhos de Ashley Morgan. Ele lembrou-se da sensação de tocar as pálpebras frias da garotinha, de fechá-las como quem fecha as janelas de uma casa diante de um temporal que se aproxima. Achava que aqueles olhos o assombrariam por um longo, longo tempo.

- Senhor? – um morador de rua chamou e tirou Chapman de seus devaneios. O homem, sentado na calçada e fumando um cigarro, chacoalhava uma latinha de moedas que parecia cheia de pequenos tambores toda vez que era balançada. – O senhor tem um trocado para me dar?

Chapman depositou uma nota de cinco dólares na lata de moedinhas, perguntando-se como o morador de rua aguentava sentar naquela calçada. A bunda do homem devia estar queimando. O calor que emanava do chão era tanto que daria para fritar a porra de um ovo.

- Obrigado, senhor – o homem abriu para ele um sorriso cheio de dentes podres e tortos. – Que Deus o abençoe e o ajude sempre.

- É, uma ajudazinha não cairia nada mal.

Ele se afastou do morador de rua e caminhou pelo estacionamento, parando de supetão ao reconhecer o Sedan de Lívia ocupando uma vaga. Aproximou-se e colocou a mão no vidro quente da janela traseira, espiando dentro do veículo e reconhecendo um de seus casacos no banco de trás. Não pensara em perguntar para Sophia como ela chegara a New Shore, mas a resposta pelo visto estava bem ali.

- Ela não me deixa encostar nesse carro – ele disse. – Mas Sophia pode dirigir.

Pensou em voltar para o hotel e pedir as chaves para Sophia, mas logo descartou a ideia. Quando saiu do quarto, Sophia dormia profundamente, com os joelhos abraçados contra o peito, as mãos fechadas nos tornozelos e a testa prensada na parede. A mesma posição de sempre, enrodilhada como um bebê no ventre de sua mãe. Às vezes, ocorria a Chapman que o único momento em que a garota se sentia realmente em paz era quando mergulhava no sono, e a última coisa que ele queria era acordá-la.

Com frequência, Chapman comparava Sophia a uma fina camada de gelo sobre um lago congelado durante o inverno. Toda vez que a garota tocava, sentia ou absorvia alguma coisa, uma bigorna de ferro era colocada sobre essa delicada superfície. Cedo ou tarde, o peso seria demais e a camada iria simplesmente se estilhaçar em milhões de fragmentos afiados. A pergunta era: quem se afogaria no lago quando o revestimento finalmente cedesse?

A noite passada, por exemplo, tinha sido particularmente estressante para a garota. Tocar a foto de Ashley Morgan e descobrir o que ela descobrira tinha deixado a mente de Sophia esfolada até a carne viva. Era o preço que ela pagava por seu dom, e era também o motivo de Chapman querer Sophia o mais longe possível do que acontecia em New Shore. Dizia a si mesmo que ela era forte o suficiente, que sobrevivera 5 anos sozinha na estrada sem ele para cuidar dela. Mas, ainda assim...

Ainda assim, Chapman a via definhar dia após dia bem diante dos seus olhos.

Talvez ele estivesse sendo apenas superprotetor, mas achava que não. Conhecia Sophia, e podia ver que a garota estava no limite, como uma folha de janela solta durante uma tempestade: logo, iria arrebentar e sair voando por aí sem controle, rodopiando cada vez mais alto até se perder para sempre.

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