2 (II)

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Sophia precisou sufocar um grito quando viu a criança no refeitório.

Ela era tão parecida com Pietra que, por um momento, Sophia achou que tinha voltado no tempo. 20 anos sumiram de seus ombros e ela era uma criança outra vez, correndo por entre aquelas mesas com a boca suja de bolo de chocolate atrás de Pietra, com Miranda gritando para elas pararem com aquilo, pelo amor de Deus, ou iriam tropeçar e cair. Essa sensação desapareceu, mas deixou atrás de si uma esteira de estranheza pela qual Sophia deslizava vagarosa. De fato, não conseguiu sequer se mexer enquanto Miranda passava por ela e ia até a garotinha morena de cabelos cacheados sentada no colo de uma jovem freira de olhos azuis, ambas assistindo desenhos na televisão.

- Joanna, querida – disse Miranda. – Tem alguém aqui que quer ver você.

A criança virou o rosto bonito para Miranda e sorriu. De novo, a sensação de voltar no tempo apoderou-se de Sophia, e ela precisou sentar-se. Ou era isso, ou iria simplesmente ter um colapso mental ali mesmo. Sem conseguir desviar os olhos da garotinha, que estendia os braços para Miranda, Sophia puxou uma cadeira e desabou nela, afundando de qualquer jeito quando suas pernas desistiram de continuar a sustentá-la.

Isso não é real. Eu estou enlouquecendo, e, quando Miranda pegou a criança no colo e começou a caminhar na direção dela: É isso. Nada disso é real. Aquela coisa fodeu com minha cabeça e agora eu estou alucinando.

Mas não era alucinação, e Miranda parou a alguns poucos passos de Sophia, balançando a pequena Pietra no colo. Ela fitava Sophia com olhos amendoados e cheios daquela curiosidade faminta que só as crianças conseguem expressar. Sophia sentiu a boca seca e lambeu os lábios, tão ásperos no momento que ela poderia lixar as unhas com eles.

- Sophia, essa é Joanna. Minha neta – disse Miranda. – Joanna, dê oi para Sophia. Ela é uma velha amiga de sua mãe.

Um sorrisinho acanhado sombreou o rosto da criança e ela deitou a cabeça no ombro da avó, erguendo uma mãozinha gorda para Sophia. A garota quis retribuir o gesto, só que seu braço se recusava a levantar. Parecia preso à cadeira por cola.

- Sophia? – Miranda franziu a testa para ela. – Sophia, você...

Sophia não escutou o resto, porque seus ouvidos se encheram do som gutural de seu próprio café-da-manhã regurgitando. Ela curvou-se para frente na cadeira e tampou os lábios com as mãos, sentindo aquele jorro quente partir de seu estômago como um foguete em ignição, subir por sua garganta e ir parar em sua boca. A garota segurou o vômito ali e fez o máximo possível para engolir de volta. Conseguiu, mas logo o fluxo ameaçou voltar e, não fosse Miranda correr até ela com um copo d'água, Sophia provavelmente teria feito uma bela sujeira no piso do refeitório.

Seus dedos se fecharam no vidro frio do copo e ela bebeu dois grandes goles.

- Obrigada – ela ofegou. – Desculpe, eu só...

E olhou para Pietra. Não, não para Pietra. Para Joanna, filha de Pietra e que era a cópia da mãe quando criança. Miranda colocara a garotinha no chão para pegar o copo de água e agora ela fitava Sophia de longe, apertando contra o queixo uma tartaruga de pelúcia e com um potinho na mão direita. Sophia não reparara em nenhuma das duas coisas antes, mas, pelo amor Deus, ela achara que estava voltando no tempo, então era de se esperar que perdesse alguns detalhes.

- Joanna? – disse Sophia. – É esse seu nome?

A garotinha fez que sim com a cabeça. Miranda, parada entre elas, olhava de uma para outra com expectativa.

- Sou Sophia. Desculpe se assustei você. Mas você é igualzinha sua mãe.

Joanna deu-lhe um sorriso de dentes de leite, e depois enterrou a boca outra vez na tartaruga de pelúcia. Agora que as coisas começavam a se encaixar na cabeça de Sophia, que ela passava a entender que aquilo ali não era uma viagem no tempo, ela conseguia pensar com um pouco mais de clareza.

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