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Depois, Sophia pensaria no tempo que passou percorrendo aquela Casa Maluca como uma viagem provocada pelo alucinógeno mais potente do mundo. Sua percepção de passado, presente e futuro deixou de ser linear para se tornar achatada, transformando tudo em uma coisa só. Nunca conseguiu dizer se levou horas ou minutos para chegar ao labirinto de espelhos. Diabos, até onde ela sabia, poderia muito bem ter ficado anos vagando a esmo por todos aqueles cômodos insanos. Em um deles, Sophia encontrou dezenas de manequins vestidos de terno e gravata vermelha, as cabeças lisas e sem rostos viradas para ela. Não pareciam vivos, mas estavam – Sophia escutava o barulho de seus pés se movendo. Em outro, a garota não deparou com nada além de uma escuridão tão densa que parecia quase sólida. Vozes vinham daquelas sombras, chamando-a em uma língua desconhecida. Sophia pensou na cidade destruída que vislumbrara naquela distante manhã na casa dos Walker e recuou, sabendo que, se entrasse ali, passaria a eternidade despencando em um abismo cheio de monstros inimagináveis. Um terceiro cômodo possuía as paredes acolchoadas e brancas; caída em seu centro, uma camisa de força. Sophia olhou-a e saiu correndo dali o mais rápido que pôde. Sentira uma vontade quase incontrolável de vestir aquela camisa.

Cômodos de cabeça para baixo. Cômodos sem gravidade, onde cadeiras, mesas, abajures e objetos de decoração flutuavam em pleno ar. Cômodos cheios de cores que Sophia não conhecia, que faziam sua vista doer e que dançavam em manchas catatônicas nas paredes e no teto. Cômodos em que uma mulher nua usando uma máscara de coelho sentava-se a uma mesa de jantar e perguntava se Sophia não queria se juntar a ela no banquete. Cozinhei meus filhos pra gente comer. Cômodos que pareciam derreter, liquefazendo-se em uma gosma preta e fumegante que cheirava à carne em decomposição.

Cômodos, cômodos e mais cômodos. E nada de Joanna.

4

Vou ficar aqui para sempre, Sophia encostou-se em uma parede e deixou-se escorregar de bunda no chão, exausta. O corredor em que estava era normal. O cômodo atrás da porta à sua frente, não. É isso o que vai acontecer. Vou ficar aqui para sempre, até morrer. Ou enlouquecer. Abandone toda a sanidade aquele que aqui entrar.

Até então, aquela correria de cômodo em cômodo que só a levava a mais cômodos e mais cômodos causara em Sophia raiva, perplexidade, frustração e, ela admitia, um pouco de medo (a vontade de voltar para aquele quarto de paredes acolchoadas e brancas e de se enfiar na camisa de força ainda era poderosa, despertando nela um desejo tão primitivo e fundamental quanto o sexual). No entanto, ela não chegara a sentir desespero de fato até aquele momento. Sentada no corredor, Sophia levou a mão única à cabeça e puxou os cabelos, tentando ignorar as lágrimas que queimavam seus olhos e dizendo a si mesma para se controlar.

Mas era difícil. A perspectiva de passar a eternidade naquela Casa Maluca deixara de ser um medo distante para se transformar em uma possibilidade real.

Fique calma, boneca. Nós já saímos de situações piores. Vamos pensar em alguma coisa.

- Então pense em alguma coisa você, porque eu estou sem ideias.

Você disse que já esteve aqui uma vez antes, com Pietra.

Sophia assentiu. Fungou e coçou o nariz molhado de ranho e lágrimas.

- Foi. Há uns quinze anos.

Naquela época, onde ficava o labirinto de espelhos?

Sophia fechou os olhos, lutando para trazer a memória à tona. Como tudo naquela maldita casa, as coisas dentro de sua cabeça estavam difusas e distantes, perdendo a tangibilidade. Tentar pescar uma lembrança era o mesmo que tentar agarrar névoa com as mãos.

- Não sei – disse Sophia. – Não consigo lembrar.

É melhor que consiga, porque nossa vida pode depender disso.

Certo. Ela estivera naquela casa há 15 anos, com Pietra. Não no dia em que conversara com Pietra sobre sentir-se como uma roda-gigante apagada, mas antes. Ou depois. Na época, a Casa Maluca era apenas um brinquedo inofensivo e divertido, e não o reflexo da mente psicótica de um assassino em série enlouquecido. Mas nada disso importava. Eis o que importava: Sophia estivera ali e, em algum momento, ela e Pietra tinham entrado em uma sala cheia de espelhos que transformavam seus corpos em coisas engraçadas de membros alongados e cabeças de balão.

Muito bem. E o que vocês estavam fazendo antes de entrar na sala com os espelhos? Pense, boneca.

- Eu não... – Sophia balançou a cabeça. – Deus, não sei. Conversávamos sobre como essa Casa Maluca era legal, e eu disse... Eu disse que havia vários cômodos vazios pra gente dar uns amassos – sorriu ao lembrar-se disso. – E então nós encontramos uma toca de coelho, igual àquela da Alice no País das Maravilhas, mas não era um buraco. Era... Ah, porra.

Levantou-se num pulo e voltou correndo todo o caminho que fizera até ali. Não foi tão difícil quanto parece, porque Sophia simplesmente passou em frente às portas dos cômodos, ignorando-as. Não precisava mais abrir uma por uma, torcendo para ver os espelhos do outro lado, porque agora sabia exatamente onde eles estavam.

Atravessou novamente o corredor que lembrava um pêndulo de hipnose, pálpebras fechadas e corpo grudado à parede, e irrompeu para a sala de estar escura. Imediatamente, sentiu-se observada por uma inteligência senil e obscena. A almofada em forma de olho na poltrona. Tentou ignorar a presença daquela coisa, assim como a do chocalho balançando no cesto de bebê, e ajoelhou-se diante da lareira. Não havia nenhuma tora de madeira ali, porque o fundo era falso. Sophia lembrava-se do guia do parque explicando isso para ela e Pietra. Essa casa tem muitos segredos, garotas. Ah, pode apostar que tinha. Cômodos que derretiam e mulheres que serviam os próprios filhos no jantar, por exemplo.

A garota rastejou para dentro da lareira e empurrou o fundo, que cedeu com facilidade diante de sua mão, saindo como a tela de uma janela e deslizando de lado, revelando uma passagem que parecia a toca do coelho em Alice no País das Maravilhas.

Sophia passou primeiro a cabeça e os ombros pelo buraco e viu-se encarando seu próprio reflexo refletido em um espelho.

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