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- Abandonei a Harley na manhã seguinte – disse Sophia. – Pilotei a noite toda, colocando o máximo de distância possível entre mim e os Walker, e larguei a moto escondida entre os pinheiros na beira da estrada. Eu tinha certeza de que Harvey continuava procurando por mim, e eu só facilitaria o trabalho dele se ficasse rodando por aí em uma Harley Night Rod.

Ainda assim, deixar a Harley para trás fora uma das coisas mais difíceis que Sophia já se obrigara a fazer. Depois de tantos e tantos dias trabalhando, enfiada debaixo da moto, girando e girando uma chave de fenda até seus braços começarem a queimar, reconstruindo-a do zero pedaço por pedaço, abandonar a Harley não tinha sido muito diferente de descartar na estrada uma parte de si mesma. A mão direita, talvez.

- E depois? – perguntou Lívia.

- Depois? Vim para o sul, até Boston, e bati na porta da sua casa. Peguei carona com uma caravana de ciganos.

- De ciganos? Mesmo?

- É. Há muitos deles por aí, vivendo na Estrada. Você ficaria surpresa.

Um silêncio caiu no banheiro, quebrado somente pelo ping-ping-ping das gotas d'água caindo da torneira que não fechava direito. Sophia e Lívia continuavam de mãos dadas, sentadas no chão frio. Em algum momento Sophia deitara a cabeça no ombro de Lívia, embora não se lembrasse de ter feito isso.

- Não foi sua culpa – disse Lívia por fim. – Você fez o que fez para salvar sua vida.

- Sabe o que é engraçado, Livy? Depois do que aconteceu em Fallpound, eu... eu prometi nunca mais usar essa coisa que tenho dentro de mim. Prometi nunca mais desenhar. Prometi o mesmo depois de Oldwheel e acho que, dessa vez, serei obrigada a cumprir a promessa. Querendo ou não.

Sophia ergueu o toco enfaixado. Uma mancha de sangue tingia de vermelho a ponta das ataduras. Ela ficara tão imersa em contar sua história que sequer notara a dor que escalava seu braço até o ombro. Agora que fechara a porta daquele quarto cheio de lembranças e de coisas perigosas em sua mente, sentia como se sua mão direita – que nem estava ali para início de conversa – fosse mergulhada em álcool depois de passar uma temporada sendo desfiada em um ralador de queijo.

Lívia levou os dedos à cabeça de Sophia e lhe acariciou os cabelos.

- Isso tudo é passado, querida. Não dá para mudar o que aconteceu. Nem mesmo você consegue viajar no tempo. A questão é: o que você vai fazer agora? Porque, cedo ou tarde, teremos de sair desse banheiro.

Sophia assentiu contra o ombro de Lívia e ficou de pé, tropeçando até a pia, os cacos de vidro do espelho quebrado estalando debaixo de suas botas. Entre os espelhos, ele se esconde entre os espelhos. Abriu a torneira e usou a mão que lhe restava para lavar o rosto. Sentia-se como alguém que passara os últimos dias em claro e, agora que parava para pensar, não tivera realmente um período decente de sono desde que saíra de Boston.

Enfiou a mão no bolso da jaqueta, tirou de lá um dos pacotes de analgésicos que comprara e mandou cinco comprimidos goela abaixo, empurrando-os com a água gelada da torneira.

- Eu vou matá-lo, Livy – disse Sophia. – O homem que assassinou Benny, Watson e aquelas crianças. É isso o que eu vou fazer quando sair desse banheiro. Vou matá-lo.

Lívia levantou-se do chão e aproximou-se um pouco de Sophia, sem tocá-la.

- E como você vai encontrá-lo?

- Ah, ele vai me ajudar – Sophia fechou a torneira e enxugou o rosto na tolha pendurada ao lado do espelho quebrado. – Ele quer que eu o encontre, porque ele precisa de mim.

- Precisa de você para quê?

- Para terminar sua obra final.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora