Ele apertou o interruptor no alto da escada e a lâmpada vermelha acendeu-se. Os lençóis pendurados no teto filtraram a luz e a espalharam, banhando o porão em um mar rubro. Com calma, ele desceu, trazendo em uma mão um copo d'água e, na outra, um prato com dois sanduíches. Parou quando chegou ao último degrau e olhou para o centro do porão. Pietra dormia.
Sentada em uma cadeira, com a cabeça caída de encontro ao peito e os cachos bagunçados cobrindo seu rosto como um amontoado de trepadeiras, ela parecia tranquila e em paz. Não fosse, claro, as cordas que uniam seus tornozelos e que prendiam suas mãos nas costas da cadeira. Ele observou-a por um tempo, contemplando-a com o respeito de um amante das artes que vê uma escultura absurdamente viva em um museu.
Deixou o copo com água e o prato com sanduíches na mesa – a mesma na qual, na madrugada de domingo, transformara Ashley Morgan em um anjo – e arrastou a outra cadeira do porão. Colocou-a de frente para Pietra e sentou-se, cotovelos apoiados nos joelhos.
Não demore. Temos coisas a fazer.
- Eu sei.
Coçou o rosto. Um formigamento insuportável se espalhava por sua bochecha direita, retalhada pela faca que Pietra enfiara em sua face. Agora, ele tinha duas cicatrizes. Uma no pescoço e outra que se estendia em uma linha irregular de seu lábio quase até sua orelha. Ele mesmo costurara o ferimento.
Estendeu a mão e segurou o joelho de Pietra, chacoalhando.
- Pietra? – ele chamou. – Pietra? Acorde.
Ela soltou apenas um gemido sonolento.
- Pietra? Trouxe algo para você comer. Acorde.
Deixe-a. Ela não vai acordar, vamos embora.
Ele estava mesmo indo, levantando-se da cadeira, quando Pietra soltou outro gemido e girou devagar a cabeça. Abriu os olhos, revelando as íris amendoadas e as pupilas dilatadas pela droga, e piscou várias vezes diante da luz vermelha do porão. Ela tentou falar, mas só conseguiu tossir.
- Espere – ele disse. Levantou-se e pegou o copo d'água na mesa. – Aqui, beba.
Obediente, Pietra bebeu. Deixou que ele segurasse seu rosto e levasse a borda do copo aos seus lábios ressecados. A água acabou em segundos, e Pietra piscou para ele, franzindo a testa.
- Elroi? – ela disse, baixinho. Tentou mexer os braços, mas as cordas que amarravam suas mãos apertaram e Pietra soltou um esgar de dor.
- Cuidado, ou vai se machucar – ele sentou-se de novo em frente a ela. – Como está se sentindo?
- Como eu... – ela balançou a cabeça. – O que... O que está acontecendo? Por que você está aqui? Cadê a Joanna?
- Você está desorientada por causa da droga. Mas vai passar.
Fitou de novo o rosto dele, ainda piscando sem parar como se tivesse areia nos olhos.
- Droga? Que droga? Olha, não estou entendendo. Eu... Nossa, como você machucou o rosto assim?
Ela ia dizer mais alguma coisa, mas não conseguiu porque seu queixo caiu. Foi quase cômica a maneira como sua boca e seus olhos se arregalaram simultaneamente, como se tivessem combinado entre si o movimento. Ela viu o ferimento costurado na bochecha dele, e então o rosto de Pietra se desfez em uma careta, franzindo-se inteiro enquanto ela jogava o corpo para trás, para longe dele.
- Não – ela balançou a cabeça. – Não, não. Ah, meu Deus, não.
Ele apenas esperou. Apesar da voz em seu crânio que o apressava, ele tinha tempo de sobra. E não queria largar Pietra sozinha naquele momento. O choque estava evidente na maneira como ela negava e balançava a cabeça, e ela precisaria de um amigo para ajudá-la a passar por aquilo. Precisaria dele.
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A Voz da Escuridão.
Paranormal[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de Fallpound, no interior dos Estados Unidos: o primeiro de uma série de assassinatos que assolou a região em 2009, cometida por uma seita satâ...