A navalha vibrava em seus dedos quando ele se ajoelhou no chão frio. Em seu rosto, a expressão de um religioso desesperado por salvação que via o Cristo vivo descer da cruz. Mas não era Jesus diante dele naquele momento: era um anjo. Ele se inclinou e beijou aqueles cabelos dourados, inalando aroma celestial. Seus músculos eram como cordas puxadas até o limite, lançando sombras em seu corpo nu, criando montanhas em suas costas, braços, coxas, pescoço e pernas. Cada vez que ele se movia, a escuridão o acompanhava. Parecia dançar em sua pele coberta de suor, ampliando-o, transcendendo-o, revelando-o. Gloriosos vislumbres de sua verdadeira forma. Jogou a cabeça para trás, os dentes à mostra em uma careta de dor e prazer, e luz branca jorrou de sua boca. Subiu rumo às cortinas penduradas no teto do porão. Uma única lâmpada escarlate iluminava o lugar, coberta por panos translúcidos que a envolviam como teias de aranha, mergulhando tudo em ondas vermelhas. Ele estava em um mar de chamas e sairia de lá purgado.
Creck, creck, creck. Você está pronto, meu amor?
- Estou. Estou pronto.
***
O corte foi de uma precisão espantosa. Um cirurgião não teria feito trabalho melhor. Ele posicionou a ponta da lâmina logo abaixo do pescoço dela, onde os ossos das clavículas se encontravam. Pressionou até fazer brotar uma lágrima de sangue, uma esfera perfeita e vermelha que depois escorreu em um fio rubro, misturando-se com a iluminação escarlate lançada pela lâmpada. Então, com cuidado para não estragar a pele, ele desceu com a navalha até o umbigo. Da primeira vez que fizera aquilo, ele errara. Estava excitado demais para se concentrar como devia, e a incisão saíra toda torta, como as bordas dentadas de uma página de caderno arrancada de qualquer jeito. Agora estava perfeito.
Ele afastou a lâmina. Por um instante, um fio negro e diagonal pôde ser visto no corpo de seu anjo, dividindo-a no meio da clavícula ao umbigo. Então o corte se transformou em um riacho vermelho quando o sangue brotou.
- Tão linda – ele disse. Seu peito nu subia e descia quase sem pausas, como se ele tivesse acabado de correr uma maratona. As gotas de suor ali brilhavam vermelhas à luz da lâmpada.
Estendeu a mão e acariciou os cabelos loiros. Depois inclinou-se e beijou seu anjo na testa fria.
Termine o seu trabalho.
Fechou os olhos e respirou fundo, tentando acalmar seu coração. Girou a cabeça no pescoço, os tendões estalando com o movimento, e arqueou a coluna, ficando na ponta dos pés, erguendo-se acima de seu anjo. Abriu os braços, estendeu-os mais do que parecia ser fisicamente possível. Na parede, suas sombras formavam asas. Conseguia sentir cada átomo de seu corpo vibrar, colidir dentro de si. Naquele momento, ele fundiu-se com os mistérios não ditos do universo e compreendeu-os todos. Elevou-se do patamar humano a algo quase divino. Uma força incompreensível feita de luz insana. Mergulhou as unhas nas costas e puxou, arrancando a pele, que soltou-se com um barulho de rasgar. Aquele casulo inútil que o cobria. O rosto falso, a máscara que ele usava para caminhar sobre a Terra. Levou os dedos aos olhos e arrancou-os. Pinçou a língua e puxou-a; o músculo pendeu até seu joelho, balançando em seu queixo, antes de despencar no chão. Seus dentes e cabelo caíram. A carne soltou-se de seu esqueleto, seus ossos tornaram-se pó. Ele não precisava de nenhuma dessas coisas mortais. Não precisava, porque ele era o Infinito. Era a única coisa real em um mundo de mentirinha, de pessoas que não passavam de sonhos.
Agora, ele transformaria o seu anjo em algo também real. Iria retirar de seu corpo tudo aquilo que fazia dela uma mentira e a tornaria uma verdade. Iria eternizá-la junto dele no Infinito, livrá-la de seu invólucro falso e mortal, ascendê-la acima desse mundo que não existia.
Iria lhe dar asas para voar.
***
Cerca de uma hora depois, ele concluiu seu trabalho, cobrindo o resultado com uma manta negra. Seu anjo ficaria escondido de olhos mortais e indignos até a hora da revelação. Ele já possuía uma boa ideia de onde isso iria acontecer, mas não seria naquela noite. No momento, sentia-se exausto, como sempre ocorria quando finalizava uma obra. Toda a luz que o incendiava por dentro e jorrava de todos os buracos de seu corpo se apagava, sugando suas energias até a última gota, deixando-o profundamente cansado. Mas satisfeito.
Vestiu novamente seus ossos, músculos e pele e subiu a escada para fora do porão. Seus pés descalços deixavam pegadas molhadas nos degraus, todo o seu corpo nu encharcado de suor. Era uma sensação indescritível sentir-se exausto daquela maneira. O coração batendo a quase 200 por hora em seu peito o excitava, um sabor doce enchia sua boca, e ele precisou se controlar para não dar meia volta e contemplar mais uma vez o seu trabalho. Ficara tão lindo. Tão perfeito.
Sim, você fez um bom trabalho.
- Obrigado – ele arfou. – Nós dois fizemos.
O sangue que o cobria do peitoral aos tornozelos misturava-se com seu suor, escorrendo em gotas acres e vermelhas pelas depressões de seus músculos. Suas mãos eram duas luvas escarlates que deixavam manchas escuras no corrimão da escada. Ele parou por um breve instante à porta do porão e apertou o interruptor para apagar a luz rubra. Teve uma breve visão do teto forrado de cobertores brancos, que pendiam do alto como grandes fantasmas silenciosos prontos para agarrar quem quer que estivesse no chão, antes do lugar mergulhar na escuridão.
Sua primeira parada foi o chuveiro. Ficou mais de uma hora no banho, tirando todo o suor e o sangue, sem pensar em nada, deixando que a água levasse embora aquelas impurezas mortais que insistiam em grudar em seu eu divino. Fechou o registro e mirou-se no espelho. Tocou com a ponta dos dedos a máscara que usava. Aquela pele. Aqueles olhos. Aquele nariz. Um dia, ele os removeria para sempre. Não iria mais precisar vestir seu rosto falso para sair de casa. Caminharia governante sobre a Terra, e todo mundo se desesperaria diante de seu verdadeiro ser. Diante de sua Luz.
Mas não agora. Agora, ele ainda era um homem e, como todo homem, se via vítima das patéticas necessidades mortais. Dormir. Beber. Comer. Encontrava-se faminto. Seu estômago roncava. Colocou uma roupa e foi até a cozinha, onde preparou três sanduíches e um suco de laranja. Sentou-se na poltrona de sua sala, ligou a televisão e ficou olhando a tela sem realmente ver alguma coisa. Seus pensamentos divagavam, não para o anjo em seu porão, mas para a criança e a mãe que encontrara mais cedo. As boas almas que o ajudaram com seu pneu furado. Fora por pouco, muito pouco. Ele sabia o quanto a situação chegara perto de desandar completamente. Lembrou-se da sensação de desespero ao ver a pequena mãozinha para fora do casaco, se mexendo, e repreendeu a si mesmo por ter sido tão descuidado. Tão humano.
Mas tudo correra bem. E, quem sabe, aquele pequeno acidente não acontecera segundo os desígnios de uma Força Maior? Talvez fosse para o pneu do carro furar. Assim, ele conhecera a mãe a filha. A garotinha. Ela tinha um cheiro de inocência que o deixava profundamente embriagado. Do que mesmo a mulher a chamara?
Joanna.
- Isso, Joanna – ele deu uma mordida em seu sanduíche, sem sequer sentir o gosto. – É um nome bonito.
É mesmo.
Ele pegou o outro sanduíche e olhou pela janela da sala. Lá fora, a noite já caíra. Estrelas brilhavam no céu. O dia seguinte era um domingo, e ele tinha trabalho para fazer logo cedo. Talvez fosse hora de ir descansar.
No que você está pensando?
Em nada. O que tomava conta de sua cabeça ainda não era um pensamento. Estava mais para um rascunho. Uma ideia meio desenhada, criando raízes aos poucos. Joanna não podia ser tornada em anjo porque era morena como a mãe, e não loira e de olhos azuis como Ashley. Não funcionaria.
Mas, mesmo assim...
Tenho certeza de que você pensará em alguma coisa.
- Ah, meu caro – ele disse. – Pode ter certeza disso.
Pode ter certeza.
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A Voz da Escuridão.
Paranormal[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de Fallpound, no interior dos Estados Unidos: o primeiro de uma série de assassinatos que assolou a região em 2009, cometida por uma seita satâ...