Psiu, você tem que ficar quietinha agora, boneca.
Ainda estatelada de costas no chão, incapaz de desviar os olhos dos dedos contorcidos de sua mão decepada, Sophia prendeu a respiração e escutou. O barulho da estante desabando continuava a ecoar – e, parecia, ecoaria para sempre naquele lugar sem fim – mas a garota não ouviu o som da coisa que vivia ali. Nada do creck-creck-creck daqueles dentes amarelos e pútridos batendo sem parar, famintos por um pedaço de mente.
Nada ainda.
Ela escutou a estante cair. Sabe que eu estou aqui.
Se ela soubesse, você estaria morta agora.
Fazendo o mínimo de barulho possível, Sophia ficou de pé no chão da mente do assassino e olhou para os lados. Mesmo contra sua vontade, sentiu-se deslumbrada. Era lindo. Havia um quê de utopia alcançada na simetria e nas formas. Nas estantes que seguiam lado a lado até desaparecerem em um bolsão de névoa branca e perolada, e que subiam até se perderem de vista em um céu que parecia feito de vidro. Na luz dourada que jorrava do alto, como se aquele lugar tivesse seu próprio sol particular. Nos objetos que repousavam nas prateleiras – a maioria brinquedos de crianças, como bolas de futebol coloridas, figuras de ação, Barbies e casas feitas de Lego, embora houvesse também outras coisas aparentemente aleatórias, como um vestido de noiva em um cabide, um crânio ressecado de uma mulher de cabelos negros usando uma tiara brilhante, uma dentadura boiando em um recipiente cheio de um líquido verde e gelatinoso. Existia força imaginativa suficiente ali para preencher galáxias inteiras e um pouco mais. O palácio mental de Sophia era algo rústico e, ainda que eficiente, construído sem muito capricho. Mas o palácio mental dele?
O palácio mental dele era todo um novo universo.
- Meu Deus... – Sophia soltou baixinho, incapaz de se conter, sentindo um arrepio na espinha ao pensar em quantas pessoas tiveram que morrer para que ele preenchesse todas aquelas prateleiras nas estantes.
Quando você terminar de babar, boneca, seria bom que se apressasse. Não temos muito tempo.
Sophia assentiu e começou a andar devagar pelo chão xadrez, olhando boquiaberta para aquelas estantes centenas de vezes maiores que qualquer arranha-céu. Eram tão altas que a garota quase esperava ver satélites planando e cometas riscando próximos das prateleiras do topo.
Preste atenção agora: aquela coisa ainda não notou que estamos aqui, mas vai notar. Temos que destruir a mente dele antes disso.
Eu sei.
Encontre o cerne, boneca. O motor-matriz que mantêm esse lugar de pé. Vamos desligar tudo.
Mas era impossível encontrar qualquer coisa específica naquele lugar. Mesmo que você soubesse o que procurar – e Sophia não sabia – continuaria sendo uma tarefa além de qualquer compreensão. O Infinito não é uma caixa de ferramentas que você abre e vasculha até achar a chave correta para consertar o motor do seu carro.
Sophia virou uma esquina, as estantes de ambos os lados parecendo se debruçar sobre ela, como se quisessem agarrá-la e colocá-la em uma das prateleiras. Era isso o que ele queria, colocar Pietra e eu em uma dessas prateleiras. Para sempre, pensou Sophia, então se esforçou para calar também seus pensamentos. Tinha quase certeza de que a coisa que vivia ali podia ouvi-los.
Contemplava um globo de vidro em uma das prateleiras, dentro do qual gotas de neve dançavam preguiçosas em torno de uma casinha de madeira, quando alguma coisa estalou sob sua bota direita. Sophia parou de andar e olhou para baixo, o pé erguido para revelar um carrinho de brinquedo vermelho que estava largado no meio do chão. Uma Ferrari com um enorme e branco sorriso no lugar do para-choque. Ao pisar nela, Sophia quebrara um de seus retrovisores, que agora pendia pendurado à porta por um único fio de plástico.
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A Voz da Escuridão.
Paranormal[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de Fallpound, no interior dos Estados Unidos: o primeiro de uma série de assassinatos que assolou a região em 2009, cometida por uma seita satâ...