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Seu corpo queimava.

Ele era pontual na hora de treinar seu eu físico, assim como era pontual em tudo na vida. Acordava às 5h da manhã todos os dias, ia à academia que improvisara em um quarto da casa e ficava lá por duas horas. Corria quilômetros, levantava peso sem fazer intervalos entre um aparelho e outro. Quando terminava, sentia seu organismo se regozijar. Os músculos delineados em sua pele como as linhas de um mapa topográfico vibravam de prazer; o suor escorria salgado por seu pescoço, costas, braços e pernas; o coração rugia em seu peito como uma fera triunfante; o sangue galopava por suas veias. Não se permitia um corpo falho, porque a falha era humana. Ele não.

Naquela manhã de domingo, ele passou os últimos minutos de exercícios apoiado apenas nas mãos, seus braços sustentando o restante de seu corpo, as palmas prensadas contra o chão frio. Seus cotovelos se dobravam conforme ele subia e descia devagar, as pernas esticadas para cima e cruzadas na outra ponta, os pés apontando para o teto. Suor pingou de seus cabelos, da ponta de seu nariz, entrou em seus olhos. Ele não piscou.

597, 598, 599...

- 600 – ele contou.

Agora chega. Ou você vai se atrasar.

Neste instante, o relógio em seu pulso apitou. 7h da manhã. O sol entrava pela janela e pintava de dourado seu corpo nu. Ele fechou os olhos e, ainda apoiado nas mãos, baixou as pernas. Depois, ficou de pé e mirou-se no espelho, para seus músculos que pareciam entalhados em mármore. Respirou fundo para controlar o coração.

Sentiu o cheiro de seu anjo no porão.

Hoje, ele a revelaria para o mundo.

***

Tomou uma rápida chuveirada, vestiu-se e parou em frente ao espelho do banheiro. A cicatriz em seu pescoço parecia mais vermelha hoje, mais evidente. Uma segunda boca que sorria quase de uma orelha à outra, debochando dele. Corria debaixo da linha de seu queixo, subindo e descendo em ângulos irregulares e rosados. Pegou a maquiagem na gaveta da pia e passou os dez minutos seguintes corrigindo aquela falha. Aquele atentado à sua essência divina. Aquela declaração de seu próprio corpo contra sua imortalidade. Parecia gritar: você pode ser ferido, você é apenas um homem. Você é mortal.

Quando terminou, a cicatriz desaparecera quase que completamente, enterrada sob camadas e mais camadas de pó. Era impossível ver o ferimento ali, a não ser que você soubesse o que procurar. E você não saberia. Ele se certificava de esconder aquilo todas as manhãs. Uma mancha impura e escura que mantinha em segredo do mundo e de si mesmo. Do contrário, sua própria mortalidade cuspiria em sua cara sempre que ele se olhasse em um espelho.

Estudou seu reflexo por mais um tempo, inclinando a cabeça para trás e certificando-se de que a cicatriz estava mesmo bem escondida. Assim que se deu por satisfeito, desceu até a sala e sentou-se em frente ao computador. Não possuía vizinhos, então hackeava a internet de uma estação de rádio próxima para não deixar rastros como contas, endereço ou número de telefone, e acessou o site do New Shore Register, o principal jornal da cidade.

Não precisou ir muito longe: a matéria que procurava estava na página inicial. A manchete FAMÍLIA É ENCONTRADA MORTA destacava-se, logo abaixo de uma foto da residência dos Straub, uma multidão reunida à porta, luzes de sirenes congeladas no tempo pelo fotógrafo e refletindo-se em azul e vermelho no vidro das janelas.

Parece que estamos ficando famosos.

- Estamos – ele sorriu. – Estamos sim.

O que diz aí? Leia para mim.

Ele leu:

- Um casal e uma criança de 7 anos foram encontrados mortos na noite deste sábado (17), dentro da própria casa, em um bairro residencial próximo ao centro da cidade. Autoridades afirmam que o que aconteceu foi um homicídio, e buscam tranquilizar a população. "Temos a situação sob controle", declarou o chefe de polícia Dell Cohen. "Todos os nossos esforços estão concentrados em encontrar o culpado pelos homicídios, e não descansaremos até ele estar atrás das grades. Ele não fará nada parecido de novo". Entre as vítimas estão Johnny Straub, dono de uma construtora civil, sua esposa, Mary-Anne, e o filho do casal, Danny. Vizinhos disseram que a família morava na residência há mais de dez anos e que participavam das atividades do bairro, além de frequentarem a igreja todos os domingos. Nenhuma foto das vítimas foi divulgada até o encerramento desta edição.

Era só isso. Ele imprimiu, buscou uma tesoura e recortou a matéria. Depois subiu as escadas até o quarto e parou diante da parede. Uma parte dela encontrava-se coberta de recortes. A outra metade estava vazia. Até agora. Com um sorriso, ele colou ali sua primeira grande realização e deu um passo para trás, admirando a reportagem do New Shore Report. Talvez, quando tivesse tempo, colocasse a foto da casa dos Straub em um quadro.

Virou-se para as matérias que ocupavam a outra metade da parede. Reportagens que colecionara ao longo dos últimos cinco anos, todas relacionadas ao que acontecera em Fallpound. Sua grande inspiração. As pessoas achavam que aquela gente havia sido morta por loucos. Chegavam até a taxá-los de monstros, mas estavam enganadas. Muito enganadas. Elas não entendiam aqueles homens como ele entendia. Viviam em um mundo de mentira, enquanto que os chamados Monstros da Floresta viviam com ele em outro plano existencial. Uma dimensão feita para poucos escolhidos. Ele estudara aqueles assassinatos com afinco, enxergando-os pelo o que eles realmente eram: não crimes, mas obras de arte, perfeitas em sua execução.

Com o coração descompassado no peito, ele aproximou-se de uma foto que colara no centro do mural de recortes. O rosto daquela que capturara o líder dos Monstros. Uma jovem de cabelos curtos e negros como os sonhos que ele tinha. Soltou um gemido de prazer e medo ao ajoelhar-se diante da fotografia, tocou-a com as pontas trêmulas dos dedos. Ela tinha os olhos mais bonitos que ele já vira: duas chamas verdes que faziam sua alma ferver. Fantasiava sobre aqueles olhos, imaginava-os em uma de suas próprias obras. Todo artista precisa de uma musa inspiradora.

Aquela jovem era a dele.


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