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Fumaça escura e densa entrou nos olhos e nos pulmões de Chapman, mas ele não parou de correr. Cruzou os braços em frente do rosto e pulou, atravessando a parede de fogo que se erguia no jardim do convento, e caiu rolando do outro lado. Não foi diferente de pular dentro de um forno ligado. O calor no interior do círculo de chamas causado pela explosão do helicóptero era brutal, e as roupas de Chapman se agarraram à sua pele, grudando em seu corpo como se ele tivesse acabado de mergulhar vestido em uma piscina.

Ele levantou-se da grama, tropeçando e tentando se equilibrar. Olhou em volta, procurando Sophia, mas tudo o que viu foi fumaça. Respirar não era só difícil: era impossível, e Chapman começou a tossir, querendo gritar o nome de Sophia, mas incapaz de produzir qualquer coisa além daquele cof-cof-cof áspero. Arrancou o paletó, usou-o para cobrir a boca e o nariz e começou a caminhar às cegas. Teve um vislumbre do que sobrara do helicóptero, um esqueleto retorcido de metal, e só.

- Vai me matar, Harvey?

Chapman nunca chegou a descobrir como conseguiu escutar a voz de Sophia. A explosão o deixara temporariamente perto da surdez e, ainda assim, mesmo com aquele zumbido apitando dentro de seu crânio como o alarme de incêndio mais barulhento do universo, as palavras da garota encontraram seu caminho até ele. Naquele momento, no entanto, ele não pensou nas probabilidades. Apenas correu, abrindo caminho pela cortina de fumaça, até conseguir ver a silhueta escura de Harvey. Ele apontava a arma para um montinho encolhido no chão, e Chapman ergueu a Glock. Teve Harvey na mira, chegou a colocar o dedo no gatilho, então xingou baixinho e pulou em cima dele.

Eles caíram e rolaram em uma confusão de pernas e braços. A Glock escapou das mãos de Chapman e ele parou de rosto virado para a terra, com grama entrando em sua boca. Tentou erguer-se, mas uma sola de sapato desceu em sua nuca e empurrou sua cabeça de volta para baixo. Os dentes da frente de Chapman colidiram com o chão; ele sentiu gosto de sangue.

- O que você acha que está fazendo? – gritou Harvey de algum ponto acima dele, aumentando a pressão do sapato em sua nuca.

Chapman agarrou o calcanhar de Harvey e puxou, derrubando-o, e de novo eles estavam rolando no chão, trocando socos e chutes, dentes à mostra como dois cães selvagens e famintos lutando por um pedaço de carne. Só que a arma de Harvey continuava na mão dele, e ele ergueu-a no alto antes de descê-la como um porrete. A vista de Chapman explodiu quando a coronha da pistola colidiu contra sua têmpora.

- Olhe à sua volta – disse Harvey, montando em Chapman e socando-o na boca. – Olhe à sua volta e veja o que ela fez – socou de novo e, dessa vez, Chapman sentiu o sangue metálico encher-lhe a garganta. – VEJA O QUE ELA FEZ.

Não é culpa dela, Chapman tentou dizer, mas não conseguiu. A fumaça e o sangue em sua garganta não o deixavam falar, e a coronhada que levara na têmpora transformara o interior de sua cabeça em uma confusão negra.

Harvey pegou-o pelo colarinho da camisa e chacoalhou-o.

- Ela é perigosa, Chapman – ele disse. – É uma assassina. Matou todas aquelas pessoas em Oldwheel, matou meus homens aqui hoje e vai continuar matando até que alguém a controle.

Sem avisar, Harvey o soltou. Chapman caiu de volta na grama, tentando puxar ar puro para os pulmões. Mesmo com a vista embaçada, ele viu Harvey se afastar na direção do montinho encolhido no chão. Sophia. Viu também que havia algo de errado com a cabeça de Harvey – parecia estranhamente desproporcional, com um lado balançando de forma engraçada, como se ele usasse uma máscara que se rasgara.

Esforçou-se para ficar de pé. Não conseguiu.

Nossa garotinha, Benny.

Foi então que Harvey estancou. Simplesmente parou de andar, a perna esquerda erguida sem terminar o passo, a cabeça inclinada um pouco para a direita, como se escutasse algo que ninguém mais conseguia ouvir. Parecia um boneco de pilhas cuja energia chegava ao fim. Devagar, ele colocou o pé de volta na grama e deixou as costas eretas, queixo erguido como alguém prestes a bater continência. De fato, chegou a levantar a mão, mas o que tocou sua testa não foram seus dedos.

Foi o cano da pistola.

- Não – disse Chapman. – Sophia, não faça isso!

Sophia não o escutou.

9

Àquela altura, a Sufentanila já tinha nocauteado o corpo de Sophia. Seus membros não passavam de um monte de carne dormente e sem vida, pesados como blocos de concreto. Lesara seu cérebro também, enchendo sua cabeça de pensamentos melados e lentos. Sua mente, no entanto, sempre tão indomável e rebelde, ainda conservava um pouco de força. Restava Poder nela, afinal, e, quando a garota viu Harvey espancando Chapman e depois se levantando, vindo em sua direção, ela fez uma tentativa desesperada para salvar não a si, mas ao homem que amava como um pai.

De rosto caído na grama, olhando Harvey chegar cada vez mais perto, Sophia Manning disparou a mente uma última vez contra ele. Achou que não conseguiria sequer passar pela muralha de ossos do crânio, mas passou e entrou na cabeça de Harvey com um único e poderoso pensamento:

Pare.

Ele parou. Seu olho direito e único se arregalou e ela sentiu o medo que tomou conta da mente dele. Bom. Ele estava certo em sentir medo.

Aponte a arma para sua cabeça.

Harvey colocou o corpo ereto e levantou um braço trêmulo. Ele tentava lutar, resistir, mas Sophia o agarrara de jeito. Harvey apontou o cano da pistola para a própria testa.

- Não! Sophia, não faça isso!

Os olhos de Sophia – a única coisa em seu corpo que ela conseguia mexer – fitaram Chapman.

- Sophia, não! – ele tentava se levantar da grama. – Você é melhor do que ele, garota. Não faça isso!

Os olhos de Chapman encontraram os de Sophia, e então a garota fitou Harvey outra vez. Harvey, que fizera experimentos nela. Harvey, que enfiara agulhas em seu corpo. Harvey, que a transformara em um rato de laboratório, tirara seu sangue e uma vez abrira o topo de sua cabeça para cutucar seu cérebro.

Faça, boneca.

Deu a ordem.

Harvey segurou a arma com ambas as mãos e apontou-a para seu olho direito, aproximando o rosto até que sua retina tocou o cano, como se quisesse espiar as entranhas da pistola. O corpo dele tremia com o esforço para resistir, os ombros chacoalhando e os cotovelos convulsionando.

Aperte o gatilho.

Plunf! A seringa disparada pela pistola cravou-se quase até o êmbolo no olho direito de Harvey. A cabeça dele pulou para trás, a boca aberta para receber o sangue que escorria aos borbotões do globo ocular destruído. A agulha mergulhou tão fundo em seu crânio que penetrou seu cérebro. Sophia sentiu a mente dele sendo dilacerada. Se seus lábios não estivessem paralisados, ela sorriria.

- SOPHIA! – gritou Chapman.

Termine.

Harvey, com a seringa projetando-se da piscina de sangue que era seu olho direito e com a face esquerda escondida por uma aba solta do couro cabeludo, abriu a boca, enfiou nela o cano da pistola e descarregou a arma.

Plunf! Plunf! Plunf!

Depois que terminou, ele caiu para frente, de rosto na grama. Uma agulha atravessara sua garganta e despontava de sua nuca.

Não se preocupe, Harvey, Sophia pensou ao vê-lo caído. Como você mesmo sempre me disse: é só uma picadinha.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora