Você leva cerca de 2 horas para ir de carro de Boston a New Shore.
Ela podia muito bem ter metido o pé no acelerador e feito a viagem na metade do tempo, mas preferiu seguir devagar. Gostava de dirigir, da calmaria que o ato lhe proporcionava. Durante o período em que passou vagando a esmo pela América, antes de conhecer os Walker, Sophia se tornara uma amiga íntima da Estrada. Assim mesmo, com "E" maiúsculo, pelo menos na cabeça dela. Sentar-se atrás de um volante, sem ter nada com o que se preocupar além de "continuar em frente", com o mundo se descortinando depois de cada curva e com a companhia de Johnny Cash e sua voz rouca no rádio, trazia ao espírito sempre tão caótico da garota uma paz que ela raramente encontrava. A experiência de atravessar quilômetro após quilômetro encerrava em si um pragmatismo único. Sophia sentia tesão pelo modo como os raios de sol entravam pelo para-brisa, delineando no vidro manchas douradas de poeira e aquecendo seu rosto; o vento rugindo em seus ouvidos pela janela aberta; as nuvens acompanhando-a lá em cima como animais de algodão. Quando chovia, ela costumava estacionar na beira da Estrada e olhar as gotas caindo lá fora, escutando-as tamborilar no teto do veículo enquanto os relâmpagos rasgavam o céu escuro e pintavam tudo de roxo e azul. Amava aqueles flashes vindos do firmamento: era quase como ser fotografada pelo universo. Outras pessoas – a maioria delas, Sophia tinha certeza – achariam isso solitário, mas não ela. Até porque ela nunca estava realmente sozinha.
Naquele momento, enquanto Sophia saía de Boston, sua velha amiga falava com ela. Dizia para a garota sossegar a boceta e dar meia volta com o carro. Que merda ela tinha na cabeça? Será que não via a encrenca na qual se enfiava? Por que ela estava fazendo aquilo?
- Ele mata crianças – disse Sophia, fitando o reflexo de seus próprios olhos verdes no retrovisor.
E o que você tem a ver com isso? Absolutamente nada. Ninguém se importou quando a sua infância estava sendo assassinada, se importou? Não. O que eles fizeram foi enfiar agulhas em você. Lembra das agulhas, boneca? Daquela agulha que enfiavam em sua medula? Lembra de como doía?
- Você é muito cruel – disse Sophia.
Eu trouxe a gente até aqui. Se não fosse por mim, você nem estaria viva.
- Cala a boca – Sophia segurou o volante do carro com força, até as juntas dos dedos doerem. – Cala a porra dessa boca.
Para a total surpresa de Sophia, sua velha amiga ficou quieta. Geralmente, ela falava e falava até quase levar a garota à loucura. Sophia suspirou fundo e tirou a mão esquerda do volante para poder enxugar o rosto suado. À sua frente, a Estrada se estendia até ser engolida pela noite, cheia de luzes vermelhas e amarelas vindas dos postes e dos faróis traseiros dos outros veículos. Ela deu uma conferida no retrovisor. Por um instante, o que viu refletido ali foram os olhos azuis de Ashley Morgan. Só que não eram mais doces e inocentes. Não: estavam cheios de uma fúria acusatória que fez Sophia se encolher no banco de motorista. Você não vai fazer nada em meu nome? Vai deixar o homem que me matou andar livre e solto por aí, é isso mesmo?
- Eu estou indo – disse Sophia. E depois, só para se certificar de que a criança tinha entendido direito: – Estou indo.
***
Sophia parou apenas uma vez durante a viagem. Estacionou em um posto de gasolina para encher o tanque do Sedan que Lívia lhe emprestara e ir ao banheiro. Aproveitou também para comer o lanche do McDonald's. Não estava mais quente, e as batatas fritas tinham ficado murchas e meio rançosas, mas serviu para lhe encher a barriga. Procurou um cigarro para fumar, mas não encontrou seu maço de Marlboro em lugar nenhum. Devia tê-lo esquecido no apartamento de Chapman.

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A Voz da Escuridão.
Fantastique[Obra registrada na Biblioteca Nacional.] Um garoto de 8 anos é sequestrado e morto na pequena cidade de Fallpound, no interior dos Estados Unidos: o primeiro de uma série de assassinatos que assolou a região em 2009, cometida por uma seita satâ...