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Oldwheel e Fallpound tinham uma coisa em comum: ambas eram cidades pequenas. As semelhanças, no entanto, acabavam aí. Com pouco mais de 15 mil habitantes, Oldwheel, localizada na fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos, tinha um armazém, uma fábrica abandonada de produtos têxtil e um posto de gasolina na rua principal, onde também ficava o minimercado, a delegacia, a prefeitura, um pequeno pub com o impagável nome de Hot Wheels, que lotava às sextas-feiras com jovens atrás de bebida e sexo fácil, além de uma delicatessen e uma igreja que, para falar a verdade, não fazia muito sucesso entre os moradores. Não havia florestas escuras e frias cercando Oldwheel: tudo ao redor era um descampado amarelo e seco, que servia de cemitério para lixo industrial e maquinários antigos e abandonados. Uma linha de trem velha, carente de uso e cuidado há mais de 20 anos, corria pelos limites da cidadezinha e sumia no horizonte. A jornada de seus trilhos rumo a Deus sabia onde era interrompida pelo cadáver do último trem que passara por ali, um colossal fóssil jurássico de metal com vagões pichados e tombados, onde adolescentes iam para fumar maconha e transar.

Enquanto Fallpound era um retrato de tranquilidade, famílias conservadoras e florestas de árvores sem idade, Oldwheel era o templo da modernidade incontrolável e da industrialização decadente.

Uma semana antes de Bernard Chapman se encontrar com Justin Pullman, uma garota de cabelos negros foi ao minimercado da rua principal de Oldwheel. O xerife da cidade, um homem acima do peso e com bigode de morsa chamado Rick McShan, viu-a entrar no estabelecimento e algo dentro dele apitou um alerta. Ele parou a viatura de patrulha – as noites de sexta eram agitadas, geralmente terminando com cinco ou mais pessoas encarceradas por beber demais e arrumar briga – e foi atrás dela sem saber bem o porquê. Observou de longe enquanto a garota enchia uma cestinha com pães e carnes de hambúrguer, caixas de suco de laranja, uma garrafa de vodca e uma embalagem de absorventes. McShan fingia comprar creme de barbear, olhando a jovem ir ao caixa, e foi então que se lembrou de onde a tinha visto. As feições dela estampavam um daqueles cartazes de PROCURADOS entregues em segredo no começo do ano para os xerifes. Às vezes, isso acontecia: alguém da Capital vinha e passava, por sob os panos, alguns nomes e rostos apenas para a autoridade máxima da lei local, pedindo para "entrar em contato imediatamente caso visse alguma coisa". Nunca dava em nada. Aquela parecia ser a exceção.

Suando de excitação, Rick McShan sacou sua arma – nunca fizera isso em todos os seus anos de serviço – estranhando o peso do revólver em sua mão e, quando se aproximou um pouco mais da garota, suas dúvidas sumiram: era ela. Seu cabelo negro estava longo e não curto como o xerife se lembrava da foto no cartaz de PROCURADOS, mas era ela. Gritou para que a garota parasse e, quando ela se virou para ele, McShan apontou o revólver.

Ela não ofereceu resistência, embora McShan pudesse jurar ter visto uma faísca brilhando no fundo de seus olhos esverdeados e felinos. Pediu para que a garota colocasse no chão a cestinha de compras, se ajoelhasse e cruzasse as mãos atrás da cabeça. Ela obedeceu cada ordem, sem abrir a boca. O xerife reparou na tatuagem no pescoço dela, um triângulo formado por galhos entrelaçados, lembrando-se de ver o desenho antes e pensar em que diabos ele significaria. Ao redor deles, as pessoas assistiam boquiabertas e assustadas. Em algum lugar atrás, uma criança começara a chorar.

McShan se adiantou, a arma tremendo em suas mãos, puxou as algemas e fechou-as nos pulsos da garota. Ela era tão magra que por pouco suas mãos não deslizavam para fora das argolas. Depois, levantou-a do chão com um puxão forte o suficiente para fazer os pés dela deixarem por um instante o piso do minimercado.

- Você está presa – ele disse, pensando: "não me diga, Capitão Óbvio".

O xerife achou que a garota fosse perguntar por que estava sendo presa ou o que acontecia ali, mas ela ficou apenas em silêncio, olhando para algum ponto à frente, sem nunca fitar o rosto de McShan. Ele disse aos espectadores que voltassem às compras, que ficassem calmos e que tudo se encontrava na mais perfeita ordem, e começou a arrastar sua prisioneira para fora dali.

A Voz da Escuridão.Onde histórias criam vida. Descubra agora