VELAS NEGRAS

155 47 32
                                    

VELAS NEGRAS


        Acordaram com um apito agudo e alto, já havia acabado o horário de descanso. Sentiam que haviam-se passado apenas alguns centures de descanso, e aquilo parecia ser uma zombaria com o fato de estarem exaustos. Porém, havia terminado o tempo deles. Mal conseguiram descansar e já deviam retornar a árdua lida. Hayden acordou de péssimo humor e furioso, os capangas os acordavam aos gritos e chingamentos, apitando e ordenando que levantassem depressa; todos ficaram furiosos.

        Que vontade de esganar esses salafrários e jogá-los no mar, isso traria algum contentamento, pensou Hayden, talvez isso acalmasse minha raiva.

        Ele se conteve muito para não obedecer ao impulso e fúria.

        Levantaram-se e retornaram aos repetitivos, cansativos e insuportáveis afazeres. Stok aproveitou a companhia de Kay'Lee no serviço de cordas para lhe contar seu estranho sonho, no qual precisava quebrar um cristal para se livrar de criaturas horrendas, semelhantes às que encontraram na floresta da perdição, como as narradas pelos Guardiões de prata e como as citadas nas antigas histórias e contos. Seres horrendos, deformados e cadavéricos.

        Kay'Lee o tranquilizou dizendo que só podia ser um sonho, mas por dentro guardava uma preocupação: desde o dia em que Stok vira a aparição no deserto, havia tido algumas reações estranhas e até arriscadas. E Kay'Lee já estava ficando preocupado com esta questão.

        Olhando para o horizonte viram uma maravilhosa pintura, o céu colorido de tons em combinações inéditas: vermelho, roxo e azul, o dia amanhecia, e com ele os ventos cortantes da noite se abrandavam.

        — Incrível como a beleza inesperada em meio ao caos e sofrimento pode trazer um grande conforto e reanimar a alma — disse Kay'Lee.

        Stok acompanhou-o na contemplação. O Sol nascia, trazendo a esperança da luz calorosa e a beleza de uma visão para poucos olhos, os quais se aventuram em alto mar. Contemplando as lindas cores sentiram seus ânimos se acalmarem.

        Durante o dia as coisas eram melhores, as condições climáticas eram favoráveis, e menos duras, porém imaginavam que a noite, desta vez, seria mais cruel e cada dia seria pior que o anterior, cada vez faria mais frio. Kay'Lee sentiu muita pena dos marujos, viu a simplicidade deles e lembrou-se dos companheiros do Vela Bravura, emboscados pelo desconhecido. Imaginava a história desses pobres marujos, muitos deles inexperientes e esperançosos indo para o reino de Lenöria em busca de melhores oportunidades, certamente eram pobres sofredores para se arriscar numa viagem ao desconhecido, muitos sem experiência alguma.

        Sua compaixão aumentou ainda mais quando viu um corpo desnudo sendo jogado ao mar, entre risos e deboches os sujos capangas afastavam um rapaz e empurraram o morto sob a amurada para as águas gélidas e sem fim. O pobre marujo havia morrido congelado durante a fria noite, obviamente não possuía roupas capazes de protege-lo e, forçado ao trabalho noturno debaixo de chuva e ventania, morreu de frio. Os homens retiraram do corpo o que puderam e que lhes seria útil, então os guarda costas do capitão jogaram o corpo ao mar. O rapaz repousava na amurada, desolado, observando o corpo se distanciar de seus olhos. Por certo, lamentando a perda do parente ou amigo. Kay'Lee, sempre gentil e bondoso, aproximou-se; procurou confortá-lo e saber sua história. Descobriu que o morto era seu tio e último parente vivo que possuía. Kay'Lee se afeiçoou muito ao rapaz e criaram grande afinidade. O jovem se chamava Esrik e demonstrou além de simplicidade e humildade, dignidade e determinação.

        Haviam-se passado apenas duas noites e Kay'Lee já havia visto mais crueldade que podia tolerar, sua revolta crescia a cada observação do tratamento que os preguiçosos e sádicos capangas davam aos marujos e a seus amigos.

        Apesar de tudo, a viagem seguiu mais tranquila durante o dia e a tarde, os capangas pareciam cansados de tanto berrar e xingar, chutar e reclamar, então apenas bajulavam o capitão e mastigavam alguns aperitivos. Os homens procuraram se preparar para esta noite, enrolaram os tecidos que puderam no corpo, lonas de velas rasgadas, roupas velhas, toalhas, roupas de cama sujas e tudo que fosse de tecido ou couro.

        A noite chegava lentamente, bem diferente do vento, que zumbia furiosamente congelantel. Ao menos ele os carregava ao destino mais depressa. A noite desta vez estava como uma pintura: a lua Shastra crescente se destacava, mas as estrelas da constelação de Touro, que logo partiria dando lugar a fria constelação de Ampulheta, eram todas visíveis no céu infinito, negro e limpo, sem uma nuvem sequer.

        Todos haviam se adaptado, parcialmente, as condições da viagem, o trabalho estava menos desgastante e todos estavam mais preparados e prevenidos para suportar o frio terrível. Assim seguiram viagem por mais três dias e três noites. Segundo o capitão, que parecia contente com este fato, faltavam apenas doze dias para a chegada ao destino. Como estavam adiantados, pela primeira vez o capitão foi benevolente e aumentou a ração de alimento, agora teriam direito a três refeições diárias. A comida que até então era suficiente apenas para mantê-los vivos e trabalhando, lhes daria uma força extra para um pouco mais, talvez para compartilhar histórias ou se divertir um pouco. O capitão Jasper havia dado a notícia como se fizesse a maior das benevolências.

        Stok, só agora ponderava o quanto as práticas a bordo e as atitudes do capitão assemelhavam-se a tratamentos dados a escravos, que sempre dão mantidos com o mínimo de alimento, sob pressões extenuantes de trabalho e com pouco tempo de descanso. Para nem ao menos terem força para pensar em se rebelar. Stok não parava de pensar a respeito.

        Nesta noite, Harley limpava o congelante convés superior, quando viu um dos capangas mais próximos do capitão, um homem mal e forte chamado Meric, entrar em sua cabine. Ele havia recebido autorização após uma sequência de batidas musical e ritmada que levaram o capitão a abrir a porta; o homem não vira Harley. O jovem mago não se conteve, escondeu-se e procurou um ponto para ouvir a conversa, sentia que descobriria algo útil, fosse bom ou não. Então ouviu o homem iniciar a conversa:

        — E então Jasper, foram poucas perdas desta vez. Apenas um morto. Quanto vamos conseguir nesta remessa?

        — Bem, serão vendidos quarenta escravos, por si só renderão duzentas moedas de ouro, um bom tesouro. Sem falar na venda dos alimentos e vinhos que trazemos. E ainda temos aqueles garotos belos e bem vestidos, as proteções de ouro que eles trazem por debaixo dos mantos e roupas de pele valem muito em ouro. Mas andei pensando, acredito que saíram fugidos do reino de Aragor, o que me faz pensar que o rei pagaria muito bem por eles, além de tudo, no reino de Lenöria encontraremos mais tolos para iludir com oferta de serviços no reino de Aragor e poderemos finalmente nos aposentar em Tenébria. Aportamos na ilha da Vela Negra em um dia e meio, de lá partimos para Lenöria.

       Ao ouvir aquela conversa ficou claro para Harley que o comandante usava seu livre acesso aos dois reinos para enganar homens dos dois lados, prometendo boas oportunidades de trabalho e negócios, mas na realidade os vendia como escravos, provavelmente a Tenébria.

        Harley sentiu uma forte certeza de que fosse o reino de Tenébria quem comprava, pois este reino havia sido acusado, pelo capitão do Bravura, de financiar navios piratas em busca de escravos.

        Sem perder tempo, Harley partiu para avisar a seus companheiros, porém, em silêncio, cuidando para não ser visto, juntos decidiriam o que deveriam fazer.

        O jovem mago alcançou Hayden e afobado disse:

        — Temos sérios assuntos a resolver, mas precisamos nos reunir.

        — O que houve? — Perguntou Hayden secando suor frio e olhando Harley com expressão de estranheza e incompreensão.

        Harley apoiou a mão no largo ombro do amigo, gerando um momento dramático, olhando-o meio abalado ou talvez agitado respondeu:

        — Decidiremos como e quando fazer um motim.

RELÍQUIAS SVÉKKRÖN I NIAT IOnde histórias criam vida. Descubra agora