AMANHECER NEGRO

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AMANHECER NEGRO

        Um novo dia amanheceu com a claridade de um distante Sol, típico de início de inverno.

        Stok e Kay não descansaram sequer um momento trabalhando.

        Harley rolou por horas pelo leito até conseguir apagar. Em sua mente rondaram todos os tipos de pensamentos sobre Hayden. Desde suas atitudes no decorrer destes longos Ciclos Lunares que conviveram tão de perto; passando pelas possíveis crueldades das quais poderia estar sendo vítima; até a possibilidade de estar morto... algum momento depois sua consciência se entregara ao sono irrefreável da exaustão e sofrimento inevitável.

        Stok e Kay'Lee haviam trabalhado duro a noite toda para limpar o navio, cuidar dos feridos, reavaliar e preservar a dispensa. Colocar tudo em ordem e ainda baixar ao menos a vela principal e mais pesada. Apesar do trabalho duro e sem descanso não deixaram de conversar sobre Hayden e a falta que ele fazia, Kay mantinha sua habitual fé e esperança de que tudo acabaria bem. Stok tinha sérias ressalvas de que as coisas nem sempre, aliás nunca, eram tão simples; mas preferiu guardar para si seu pessimismo, como Kay diria. Mas que para ele era tão somente realismo.

        Enquanto trabalhavam duro e com muita eficácia a noite toda, Stok observava até mesmo com raiva o quanto Kay demonstrava sua fé cega constantemente, mantendo sempre o otimismo e a tola certeza de que nada aconteceria a Hayden e o encontrariam em breve. Stok tinha plenas convicções de que isto era impossível, por isso guardava uma forte aflição sozinho ao ver Kay com tamanha tranquilidade e confiança.

        Stok buscava forças no desejo de encontrar o capitão Jasper e os piratas que o resgataram, mas sobretudo de encontrar e acabar com a tal Rainha Serpente, ou simplesmente Usurpadora, a verdadeira responsável por trás de toda pirataria. Evitava pensar logicamente no destino do primo e amigo. Mas isto o levava a outros pensamentos: Drak'Nazit, seus pais, Alyra, a linda jovem aprendiz de maga, seu tio Walt e sua esposa Villinar, sua bisavó Zioconda, Myca e May tutoras que aprendeu a amar, os Rangers que se tornaram seus irmãos de ofício, além é claro de diversos amigos e servos do palácio com os quais cresceu, principalmente Mance, seu aio. Tentava se convencer que haviam todos sobrevivido ao massacre de invasão surpresa. Então se culpava por ser tão tolo e iludido quanto Kay. Sua mente estava um turbilhão de conjecturas e culpa.

☸ ⚜ ☸ ⚜ ☸

        O navio deslizava por águas plácidas e cada vez mais gélidas. O sol subia tão frio quanto um candelabro pelo firmamento. O inverno realmente tomava as rédeas do clima. Todos barris de água congelaram completamente. Para consumir água precisavam quebrar as pedras e aquecer.

        Haviam agora oito tripulantes para executar todo trabalho. Era bem menos que o essencial. Haviam três feridos com certa gravidade, entre eles Esrik. Stok os escalou para cuidar da dispensa. Serviço mais leve, mas indispensável.

        Stok reuniu todos os tripulantes para uma importante decisão.

        — Atenção todos! — disse Stok com tom firme. — Agora somos apenas nós. Onze pessoas para cuidar de todo esse navio. Não haverá moleza alguma se quisermos sobreviver. Então quero uma decisão: quem quer ir para Lenöria, quem quer ir para Tenebria e quem quer retornar para Aragor?

        — Ir para Tenébria? Quem seria louco de querer isso? — questiona um dos marujos chamado Melry.

        — A questão é que Tenébria fica bem mais próximo que Lenöria. E não temos grandes estoques de mantimentos e água. — disse Stok com tom de tristeza.

        — E quanto a retornar para Aragorn? — quis saber outro, chamado Tony.

        — Aragor está a seis dias, mas os ventos não irão ajudar nada. O trabalho será três vezes mais duro e talvez leve mais tempo para retornar a Aragor que prosseguir até Lenöria. Então é melhor que votemos. Quem quer ir a Tenébria? — Ninguém ergueu a mão.

        — Quem quer retornar a Aragor? — quatro ergueram a mão abalados e atemorizados.

        Quem quer ir a Lenöria? — perguntou finalmente Stok. Quatro ergueram a mão. Três deles não escolheram nenhuma opção. Os garotos não haviam votado até então, mas frente ao impasse desempataram: Harley e Kay votaram por seguir em frente, rumo a Lenöria.

        — Homens! Firmeza! Vamos para Lenöria e seremos heróis. Sobreviventes de um ataque de piratas, com vários deles presos e tendo confirmado que Tenébria caça homens e embarcações para torna-los escravos.

        — Confiamos em vocês! Vamos para Lenöria! — concordaram os homens, agora mais animados.

        — Então ao trabalho, homens!

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        Seguiram viagem rumo ao sul por mais seis dias de muito vento, muito trabalho e pouca alimentação. Num determinado momento crítico, os homens desejaram não dar mais alimentos aos prisioneiros. Pois havia mais uns cinco dias de viagem e a comida estava no fim.

        Era uma situação muito crítica. Mas Stok não estava disposto a cometer uma atrocidade de deixar seres humanos morrerem de fome, mesmo sendo criminosos. Assim, mantiveram a prática de alimenta-los ao menos o suficiente para viverem.

        Dois dias após, os homens estavam incontroláveis, julgavam estar se arriscando e se sacrificando demais, comendo tão pouco para manter malditos piratas vivos. Estavam decididos a matar seus dos oito vivos. Stok teve então de interferir mais firmemente. Sacando sua espada e bloqueando o acesso de todos. Mostrando que ele estava no comando e todos deviam obedece-lo.

        Stok estava numa situação muito difícil. Suas certezas eram postas a prova diariamente. Já não sabia mais em que acreditar ou não. Mas estava decidido a fazer o certo, mesmo que parecesse impossível. Se os deuses realmente existiam como tanto acreditava Kay'Lee e suas missões tivessem sentido, deveria manter a firmeza e fazer o justo, perseverar até o último suspiro de vida.

        Dois dias depois e era o último prazo que haviam estabelecido para chegar em Lenöria, mas o prazo escoou e não havia nem sinal de terra. A comida estava esgotada, não havia mais nenhuma fonte de alimento disponível e os prisioneiros não comiam havia um dia. Os tripulantes tiveram uma mínima alimentação na noite anterior. E estavam tão fracos pela péssima alimentação dos últimos dias que não tinham mais forças para trabalhar. Estavam amontoados no antigo aposento de Jasper, jogando tudo que encontravam para alimentar o fogo da lareira e se manterem aquecidos. Até mesmo Stok estava fraco demais para qualquer outra ação e até mesmo para manter seu próprio corpo aquecido.

        Ali onde estava, no comando do leme, sentiu um estranho calor invadir seu íntimo e convida-lo ao sono mais tranquilo e irresistível. Pouco tempo depois despertou revigorado e alerta. Por alguma razão sentia que estava em perigo. Lembrou-se de um sonho terrível que teve uma vez num barco. Mas agora tinha certeza de estar acordado.

        Sentiu algo se aproximar pelas costas e virou atacando com sua lâmina. Era uma criatura pavorosa e viscosa, com pele negra e lustrosa como piche. Stok o atacou e o deixou se debatendo no chão. Se afastou e atacou outro que se aproximou loucamente. Depois mais um, estava com a respiração ofegante, pensando nos amigos e nos tripulantes no aposento de Jasper. Entrou lá alertando a todos da invasão, mas não havia ninguém lá dentro. Quando se voltou para trás, havia mais uma criatura, ele atacou sem pensar duas vezes, foi então que sentiu uma pontada no estômago, olhou e viu a espada fincada até o cabo em seu ventre. Olhou novamente para cima e viu a si mesmo, assustado e segurando a espada. Olhou para as sombras assustadoras no convés e viu que eram todos os tripulantes do navio. Incluindo seu grande amigo Harley, chorando e agonizando de dor e Kay'Lee, amparando o pequeno em seus últimos estertores de vida.

        Então Stok compreendeu que havia matado todos. Ele era o culpado. O maior assassino e maior criminoso a bordo.

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