Ellie - IV

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27 de outubro

Diário de Ellie

Duas outras crianças apareceram machucadas e delirantes hoje de manhã. E o total de mortes na Rue Sainx chegou a dezessete. Todas violentas e macabras como a que eu vi.

Essa tarde, eu e Kat estávamos no quintal do orfanato lavando toalhas sujas com o sangue das crianças. Kat esfregava cantarolando uma canção em uma língua romena e encarando a água vermelha com toda concentração do mundo.

A cena era encantadora. Fazia com que eu pensasse em crianças de uma Europa distante e desconhecida, usando roupas coloridas, brincando em uma floresta a beira de um riacho, enquanto uma garotinha pobre lava roupa imaginando quando pode se juntar a eles. Alguma coisa dentro de mim me fazia pensar que talvez a música falasse sobre isso.

- Onde você aprendeu essa música? – Perguntei, quando ela terminou.

Kat afundou a toalha que segurava na água e puxou de volta lentamente, e, segurando um suspiro, respondeu:

- Onde mais? Na Romênia.

- Você já esteve lá?

Mais uma vez ela terminou de lavar uma peça antes de responder.

- Eu já estive em toda Europa, Ellie. Em florestas escuras, em montes nevados, onde os sábios habitam e a comida é intragável. - Ela começou a torcer as roupas e as colocar em uma bacia. Iríamos usar as mesmas toalhas para diminuir as febres. - Conheço as pestes. – Ela disse depois de um tempo. Seus olhos pareciam sem foco, se lembrando de algo passado. – Conheço as bruxas. Sei de histórias que deixariam seus cabelos em pé. Vi coisas que se transformariam em seus piores pesadelos.

Naquele momento a imagem do gato me veio na cabeça. Os olhos dela eram os olhos do gato. Eu sabia que era ela.

- O que é você? – Deixei escapar entre dentes.

Então ela voltou a si.

- Como?

Fiquei tão em choque quando os olhos dela voltaram ao normal gigantesco e doce, que não consegui voltar a perguntar. Balancei a cabeça, e ela terminou de arrumar as tolhas.

Mais tarde perguntei como ela podia saber tanto sobre a Europa sendo tão jovem. Ela ergueu os olhos, deu de ombros e disse algo que soou como alemão então se virou e voltou para dentro do orfanato com a bacia nas mãos.

29 de outubro

Diário de Kat

"Laß sie ruhn, die Todten." Deixe os mortos em paz.

Eu sei que Ellie sabe.

Eu vi a certeza em seu olhar quando eu falava sobre minhas viagens.

Não sei porque, mas não me importo que saiba e ela prefere ignorar o que sabe. Tudo que ela queria era uma amiga, e eu apareci me tornando isso. A órfã estrangeira, como ela. E é por isso que independente de que criatura assassina ela imagina que eu sou, ela não vai me denunciar. Ou fazer qualquer outra coisa que um humano normal faria.

Ah, Ellie... De todos os poemas alemães que eu li escondida quando criança, Lenore sempre foi meu preferido. Aquela que ama o morto e mantém nele sua fidelidade, com a morte compactua e à morte sucumbe, mesmo que tudo que tenha feito seja simplesmente amar.

31 de outubro

Diário de Ellie

Longa manhã arrumando os preparativos para a festa de Halloween. É claro que madame Pepot vai fazer seu discurso sobre os demônios de outubro para as crianças, que imploraram para que a tradição fosse seguida, mesmo com Mary fora do orfanato. Mas estou divagando. Nenhuma dessas coisas é mais importante para ser relatada do que o que aconteceu noite passada.

Kat foi embora... Começar por essa frase prova como minha cabeça está bagunçada e quão confusa estou. Ela não foi embora, apenas deixou o orfanato. Não podia mais ficar. Deus, porque não começo do início de uma vez por todas?

Ontem a noite eu já estava deitada, quando a camareira bateu à porta e disse que uma garota queria me ver. Eu me assustei com isso, mas pedi para que a deixasse entrar.

Era Kat. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, e suas mãos... Cheias de sangue. Ela tinha matado alguém outra vez, mas pela primeira vez sentiu medo.

Quando eu pedi que explicasse tudo, ela me contou sua história: Sua mãe era uma bruxa que a transformou em vampira faz bastante tempo (ela não disse quanto). Não podia controlar seu instinto de matar pessoas. Não imaginou que tantas consequências pudessem vir do que havia feito. Ela estava tão confusa e tão perdida que nem percebeu que o sangue em suas mãos vinha de um corte, imenso acima dos pulsos.

Quando percebeu, o desespero dela pareceu aumentar e ganhar proporções gigantescas. Ela disse que se não tivesse sangue humano não poderia se curar! Não pensei duas vezes antes de oferecer o meu a ela, eu parecia naturalmente inclinada a isso, como se algo dentro de mim estivesse pedindo por isso.

Ela negou. Mas como continuou chorando, eu fiz antes dela, como fazemos com crianças no orfanato. Puxei seu pulso e me aproximei do sangue, achando-o menos repulsivo que geralmente acho.

Por meio segundo, um arrepio tomou conta de mim quando percebi o quanto o sangue dela era frio, mas me afastei com o susto e a sensação passou.

Então entreguei meu pulso para ela. E ela me mordeu. Foi mais doloroso do que podia imaginar, mas acabou rápido, pois ela jurou que não me machucaria de forma definitiva. Então disse que agora estávamos ligadas, para sempre, porque tínhamos trocado sangue. Nós duas nunca mais ficaríamos sozinhas.

Esse ponto é o último no diário de Ellie. Ela se sentiu tonta então e desmaiou, acordando apenas quando o despertador do quarto badalou o horário da festa de Halloween. 

As Crônicas de Kat - A História CompletaOnde histórias criam vida. Descubra agora