Genebra, Suíça
27 de dezembro de 1942
Novo diário de Kat
Há males que vem para o bem. Eu realmente não sei de onde essa frase surgiu.
Estávamos em uma sala lotada de homens feridos. Era um hospital improvisado na Suíça que fora criado às pressas para receber feridos da Segunda Guerra. Havíamos ido para a Suíça justamente para escapar da guerra por alguns anos.
As gêmeas ensinavam Anika e Naomi a fazer malabarismos com bisturis. Ellie, Sophie, Charlottie e eu estávamos sentadas no chão ao lado de uma maca vazia, conversando sobre o passado de Charlottie. Kaylee não era vista em lugar nenhum, mas nenhuma de nós parecia se importar.
Kaylee evoluiu bastante depois do primeiro ano de transformação. Na verdade, eu acho que as vampiras de Ellie (Anika e as gêmeas) a convenceram de que todo o sangue que ela beberia e todas as pessoas que ela mataria seriam para o bem maior, para a salvação de todos os vampiros ou algo do tipo. Elas sabem ser convincentes quando querem.
- Uma das minhas coisas favoritas era passar algum tempo em uma cidade agindo como uma moradora normal. – Charlottie dizia sorrindo, enquanto Sophie fazia uma trança complicada em seu cabelo – Eu hipnotizava alguém a acreditar que era meu pai ou mãe e o levava para uma cidade nova. Fazia com que a cidade toda me conhecesse, causava pânico por algumas semanas e depois matava todos é claro. Acho que fiz isso quatro vezes em um espaço de 10 anos. Foi interessante.
Esse relato me fez pensar em como minha vida seria se eu não tivesse sido forçada a ir para Paris e encontrado Ellie - esse encontro foi direta ou indiretamente responsável por todas as coisas que aconteceram depois. Provavelmente eu ainda estaria em algum lugar da Ucrânia com alguns amigos destruindo vilas e matando pessoas. Minha mãe ainda estaria viva. Eu seria uma vampira normal. Fiz uma careta. Estava mais do que satisfeita com o destino que levei.
Sophie terminou a trança de Charlottie e se levantou para esticar as pernas. Eu prestei atenção em seus movimentos, quase surpresa em perceber que ela não parecia tão diferente do que sempre fora. Depois que começou a aceitar as, assim chamadas, alucinações, levou menos de dois anos para que a alma de Sophie voltasse ao controle de seu corpo. Tecnicamente ela sempre esteve no controle, mas agora não estava mais em agonia no Inferno. E também não está em seu corpo. É complicado entende ou explicar, mas ela está em algum lugar por aí, controlando o corpo de longe e deixando-o indestrutível.
Sophie não mudou muito depois de ter a alma de volta, exceto por duas razões: agora ela sente e não precisa mais de sangue ou qualquer outro tipo de nutrição. Sentir não fez dela sentimental. E não precisar de sangue não fez dela menos cruel. Sophie passou por muita coisa, em vida e depois dela e optou por não ser frágil e a lutar pelo que acha ser correto. É uma das meninas de quem eu mais tenho orgulho, junto com Ellie.
E falando em Ellie, ela é a causadora de um mal completamente sem sentido. Quando saímos do hospital onde nos alimentamos, e íamos até o acampamento achar algum lugar para dormir, ela me puxou pelo braço para que eu andasse atrás do resto do grupo animado.
- Eu acho que você já sabe, mas não custa nada confirmar seus temores. Eu fui responsável pela morte de Bianka.
Suspirei. É claro que eu sabia.
- Posso ao menos saber por quê?
- Não, você sabe que não. – Ela mordeu o lábio inferior - Mas é só isso? Não está brava por eu ter feito algo totalmente egoísta e contra o bem maior?
Torci a boca.
- Acho que você está passando muito tempo com Annie e as gêmeas, Ellie. Eu não me importo com o bem maior. Só quero fazer isso tudo porque quero ser um dos seres mais poderosos do mundo. Mas eu detesto quando conhecimento é jogado fora por nada. Bianka repassaria uma espécie de conhecimento para suas descentes que nenhum clã nesse mundo teria. E eu valorizava Deyah o suficiente para querer um futuro assim para os descendentes dela, mesmo que o bem maior não fosse alcançado. Tudo que eu queria saber é: Valeu a pena? Matar Bianka foi realmente a única solução lógica?
Ellie tirou os olhos azuis de mim.
- Saber demais também é perigoso, Kat.
1º de janeiro de 1943
Diário de Kat
- Às vezes eu acho que essa guerra vai durar para sempre. – Naomi disse, suspirando. – E se não durar, uma próxima virá e outra e outra e mais outra até o mundo acabar.
Ela estava deitada no chão com os pés na parede, a luz fraca do sol coberto por nuvens entrando pela janela acima de suas pernas. Todas nós estávamos de calças e com mais casacos do que jamais usáramos antes. Era o inverno na Suíça, implacável.
- Não sei por que vocês detestam tanto a guerra. – Charlottie disse embaralhando cartas para ensinar às garotas alguns jogos - Banhos de sangue são sempre interessantes.
- Correr o risco de ter a cabeça explodida mesmo dentro de casa. Sentir esse cheiro de morte e de doença em todo canto tendo faro apurado. Saber que milhões de pessoas que poderiam ser ótimas vampiras estão morrendo. Isso não tem nada de interessante.- Rebati, lendo um livro próxima a lareira.
Quando saímos de Berlim, fomos para a Áustria. A cabana em Graz era o melhor lugar para que Sophie descansasse enquanto sua alma voltava. Passamos esses quase dois anos lá. Aproveitei esse tempo para mostrar a Naomi o legado de nossa família e de forma surpreendente até para mim, disse a ela que podia usar qualquer coisa ali a seu bel-prazer. Ela ficou satisfeita em ler o máximo daquilo.
Kaylee e Ellie estavam mais do que satisfeitas em ficar reclusas na cabana por aquele período. Passavam dias cuidando dos jardins. Fizeram um novo guarda-roupa inteiro para todas as nove, já que vivíamos nos desfazendo dos nossos. Charlottie passava o tempo todo com a irmã. As duas tinham muito a colocar em dia e Sophie às vezes ficava tão fraca que precisava do humor ácido de Charlottie para fazê-la rir. Enquanto isso, Anika e as gêmeas – que naquela época ganharam o título de "vampiras de Ellie" já que as "três mais novas" não fazia mais sentido – serviam de leva e traz para as notícias de Viena sobre a guerra. Elas viajavam de trem uma vez por mês e passavam uma semana na cidade. Quando a guerra acabou, a Áustria se tornou república e a família real foi exilada, Anika se recusou a voltar a capital por meses. Só voltou a Viena quando as gêmeas convenceram Kaylee a se esbaldar em um pouco de sangue.
Ao fim de 1920 nós já estávamos com tudo organizado e prontas para viajar pelo mundo a procura de vampiras em potencial, começando pela Europa, é claro. O problema: A Europa não estava pronta para nós. Ou para qualquer outra coisa. A guerra destruíra grande parte do território do país. Riqueza era algo raro, quase impossível de se encontrar naqueles dias. O valor de todo dinheiro europeu entrara em queda, ou melhor, em depressão, com uma rapidez vertiginosa.
Passamos alguns anos pulando entre um país e outro, procurando alguém ou alguma coisa que valesse a pena. Já havíamos rodado mais de metade da Europa quando 1934 chegou e as meninas resolveram que com outra guerra se aproximando (o que já era óbvio) era melhor parar um pouco e tirar aquele ano para comemorar meu aniversário de 100 anos.
A ideia era bater o recorde de assassinatos que tínhamos cometido. Nenhuma de nós sabia o número exato de pessoas que havíamos matado – exceto Anika que nunca parou de contar – então acabamos matando enlouquecidamente por dias. Eu achava aquilo contra os princípios nos quais Deyah havia criado os vampiros e o que queria que nós fizéssemos, mas concordei com a ideia maluca pelo número de lembranças agradáveis dos meus primeiros anos que aquilo me trazia. E concordei que fazer 100 anos com rosto de 10 e corpo de 14 é uma ocasião especial demais para não ser comemorada. Por isso, 34 foi um ano completamente perdido. Apenas depois dele voltamos a andar por países passando um determinado período de tempo em cada cidade para ver se encontrávamos alguém que servisse para nossos ideais.
Em 39, a Segunda Guerra explodiu. Viemos então para a Suíça que não luta em uma guerra desde antes de eu nascer. Deveria ser um lugar seguro.
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As Crônicas de Kat - A História Completa
VampireConheça Katerina, uma vampira criada à força na Europa do século XIX por uma mãe bruxa desesperada em sua busca pela imortalidade e seus segredos. Kat sobreviveu por muito tempo se considerando nada além de um ser inferior do Inferno, destinada apen...