Bucareste, Romênia
21 de outubro
Eleanor
Depois de comprar um caderno azul safira em uma papelaria no centro, eu me vejo escrevendo em um diário pela primeira vez em mais um século. Faço isso em público, em uma cafeteria com vista para uma rua de comércio, movimentada a essa hora da tarde. Não sei exatamente o que estou fazendo aqui, exceto pelo silêncio que habita a casa onde ainda estou. Me peguei sentindo falta até mesmo de Pierre, então precisei sair. Ver gente melhoraria meu humor.
Começo a escrever, sem me decidir em qual língua vou registrar meus pensamentos. A caneta corre solta, variando entre o inglês dos meus pais, meu francês natal, o romeno que me cerca, o português brasileiro de Olívia e o alemão firme de Kat. Pensar nisso faz com que meus registros voem até o dia da batalha final. A cacofonia de línguas com as quais nos comunicamos nos dias em que passamos na Antártica – cada uma querendo falar sua língua materna, encontrar um pouco de familiaridade no caos.
Uma bicicleta buzina do lado de fora e me faz saltar. Percebo que já tomei sete páginas do diário novo, me lembrando de como Kat costumava fazer com o seu. Seus registros eram interrompidos por anos, para em seguida passarem das dezenas de milhares de palavras em duas semanas. Eu preciso parar de comparar tudo que eu faço a Kat – de me lembrar dela a cada situação –, mas não consigo.
Deixo a caneta de lado e pego a garrafa de água que pedi como distração. Observo as pessoas ao meu redor, envolvidas em sua conversa ou em seu café. Apenas dez pessoas estão ali, mas a cafeteria é tão pequena que parece cheia. Um jovem distraído lê um livro enorme enquanto engole grandes goladas de um copo grande café. Uma família de quatro aproveita um momento de paz enquanto um bebê dorme e uma menininha de dois anos assiste alguma coisa em um tablet. Uma adolescente parece entretida demais no seu bolo de chocolate para perceber qualquer outra coisa. Um senhor de idade lê jornal enquanto toma uma pequena xícara de espresso. Enfim, duas mulheres apenas um pouco mais velhas que eu, conversam animadamente. De onde estou, só vejo o rosto de uma e antes mesmo que preste atenção com mais cuidado, eu posso sentir que a parte mais irritante de ser o Réquiem vai acontecer novamente.
Uma vez ou outra, eu me pego olhando para alguém e acabo vendo mais do que eu deveria estar vendo. Quando seus poderes envolvem conhecer corpo e alma, você acaba sabendo demais e o conhecimento é uma grande maldição. Às vezes eu posso sentir quando alguém enfrentou um trauma profundo ou está escondendo um grande segredo. Não consigo entender como, mas eu sei. Em outras vezes, eu olho para o corpo de alguém e noto um movimento imperceptível de uma bexiga cheia ou até mesmo células de câncer se formando. É rápido, dura um milésimo de segundo, mas eu sei o que sei e permanece comigo por muito tempo. Às vezes eu não consigo tirar os olhos da pessoa por tempo demais e em outras eu tenho rompantes dos sentimentos transmitidos pela pessoa. E quando você é amaldiçoada a ser controlada pelos próprios sentimentos...
Quando olho para a moça de cabelos altos e feições sinceras, eu não sei o que deveria estar vendo. Ela tem aquela impecável pele negra de Juliana e a confiança de alguém que consegue assumir o controle de qualquer situação. Não vejo nada, mas não consigo tirar os olhos, então a examino novamente. Meus olhos finalmente se ligam aos dela.
Seus olhos são enormes bolas amendoadas, com repuxos quase imperceptíveis. São castanhos, mas de um castanho tão profundo que parece vermelho. Eles absorvem a luz a sua volta, lançando pequenas faíscas rubras. Brilham tanto que chegam a refletir em sua pele. Só de olhar naqueles olhos eu sei que ela não é romena, mas está em Bucareste com um objetivo muito específico. Seus olhos se movem lentamente e eu percebo que a mulher à sua frente é sua melhor amiga e... ex-namorada? Algo aconteceu que afastou as duas romanticamente, mas sua ligação segue firme. Me pego desejando saber mais, mas ela pisca e um cílio cai de seus olhos até a mesa. Sou distraída por esse movimento e acompanho a queda do cílio com atenção. Quando ele atinge a mesa, eu tenho um lampejo de algo. Um sentimento? Uma impressão? É rápido demais para mim.
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As Crônicas de Kat - A História Completa
VampireConheça Katerina, uma vampira criada à força na Europa do século XIX por uma mãe bruxa desesperada em sua busca pela imortalidade e seus segredos. Kat sobreviveu por muito tempo se considerando nada além de um ser inferior do Inferno, destinada apen...