E não sobrou nenhum - I

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"A manhã se dá a todos —

Para alguns — a Noite

A raros afortunados —

A luz da Aurora."

EmilyDickinson (Morning is due to all)    


Bucareste, Romênia

5 de maio de 2016

Charlottie

Para um vagabundo ermitão a sensação de casa pode ser como o desejo de voar. Inalcançável, mesmo quando muito real. Desde que precisei fugir de Verdant para o mais distante possível de Sophie, eu só senti isso – a calma sensação de acordar embaixo de um teto, cercada por coisas que são minhas, sabendo ao deixar o quarto eu serei recebida por pessoas importantes para mim – duas vezes. Uma em Nova Orleans. A segunda no antigo hotel abandonado no subúrbio de Bucareste, para onde nós finalmente voltamos.

Depois que consigo me convencer a abrir os olhos e virar de barriga para cima na cama confortável e quentinha, eu fico encarando o teto desbotado por um tempo. Embaixo de mim, a casa começa a acordar, os sons preenchendo seus cantos. Somos nós: Kat, Ellie, Sophie, Anika, Valentina, Kaylee, eu, Tatiana, Juliana, Louise, Olívia e Pierre com o acréscimo da irmã mais nova de Juliana, Alexandra. Estamos nos escondendo, ao mesmo tempo que descansamos e criamos estratégias. Treinamos para as batalhas que o Destino nos reserva, enquanto lutamos contra o futuro, nas diversas faces em que ele se apresenta. Especialmente, a profecia.

O pensamento faz com que eu crie coragem para me levantar da cama. Visto um roupão felpudo e pantufas e resolvo ir lá para a sala, enfrentar a série de pensamentos filosóficos que o dia de hoje me reserva. É só isso que eu consigo fazer quando encaro o circo que Kat montou no andar de baixo. Pensar, pensar e pensar. Deixo do quarto e resmungo "bom dias", enquanto passo pelo corredor. A maior parte de nós passa a maior parte do dia nos quartos ou nos corredores. Evitando a sala e as informações espalhadas pela parede. Espero que alguém me peça para trazer uma bolsa de sangue na volta, mas surpreendentemente ninguém o faz.

No primeiro andar, bato à porta de Sophie, mas ela não está lá dentro. Provavelmente já foi para a cidade. Sophie é assim: se ela pode estar na capital, é exatamente onde ela estará. Não acho que a verei em casa até o pôr-do-sol, mas me pergunto porque ela não me convidou para ir com ela desta vez. Finalmente, chego ao andar de baixo. Vou direto para a cozinha, onde escolho uma bolsa de sangue na geladeira. Litros e mais litros roubados de hospitais no caminho estão tomando a geladeira. Foi divertido, o tipo de ação que precisávamos. Depois de me servir com uma caneca de sangue, volto para a sala e, encostando no balcão, encaro o caos.

As paredes estão tomadas de fotos, imagens e anotações. Como em um filme de espião, Kat organizou tudo pela sala, com marcadores e linhas ligando informações importantes. É uma espécie de apresentação da profecia, se desdobrando diante dos nossos olhos. Foi a forma que Kat encontrou de nos contar tudo, depois de semanas de estudo. Todas as aulas com Rowan não a fizeram descobrir como lutar contra o Destino – videntes desistiram disso milênios atrás – apenas fizeram com que ela conhecesse de trás para a frente cada detalhe de seu futuro.

Bebo um pouco da caneca enquanto olho em volta. Assim como eu, outros tiveram a mesma ideia de observar o caos e tentar encontrar sentido nele: Olívia e Pierre estão em cantos diferentes da sala, observando ou anotando. Kat dorme no sofá, com um livro sobre a barriga e os pés sobre dezenas de papéis. Me aproximo de Olívia e aponto para Kat quando ela olha para mim.

– Ela nunca sai daqui? – Pergunto.

– Nunca a menos que alguém a arraste, literalmente. – Olívia responde.

– Ela sabe que nós preferimos que ela não enlouqueça antes de descer ao Inferno não sabe?

– Talvez seja tarde demais. – Olívia completa, dando de ombros.

Não há como responder a isso. Parada ao lado de Olívia, começo minhas observações pela parede que conta a história do que já aconteceu até agora e do que acontecerá. Em detalhes. De acordo com um calendário lunar detalhado por uma vidente no século passado, estamos no limbo. O próximo evento é "O Dia em que o Fogo subirá da Terra aos Céus". Nós devemos estar descansadas, relaxadas e bem alimentadas para garantir que estejamos preparadas para o que quer que signifique.

– Algum chute? – Olívia pergunta ao me ver encarando o calendário.

– Pode ser qualquer coisa. Alguém pode fazer uma fogueira na estrada e uma de nós a encontramos. Pronto. O fogo subiu da Terra aos Céus. E no dia seguinte... – Me interrompo e olho para trás.

Na parede exatamente atrás de mim estão presos treze retratos, espalhados na forma de uma árvore. Cada um deles possui um título pregado acima. Se o significado do título é claro, uma folha de papel está presa ao lado do título o explicando. Abaixo do retrato estão pregadas outras folhas de papel, arrancadas dos diários, explicando o que cada uma das pessoas retratadas fez ou fará em um futuro próximo. Cinco retratos possuem uma folha de papel acima dessas todas, e um destino está faltando – a última pode ser qualquer uma das oito restantes. Esses papéis foram escritos em vermelho e chamam atenção de qualquer pessoa que passe os olhos pela sala. Eu encaro A Irmã e ela me encara de volta com desafiantes olhos castanhos.

– Você parece resignada. – Olívia diz, simplesmente.

– Não posso lutar contra o que eu não sei o que é. – É minha resposta. – "E uma sombra ganhará um propósito.". Não poderiam ser menos específicos se tentassem.

– Persephone diz que vai fazer sentido, um pouco antes de acontecer.

– Isso é inútil. – Bufo.

Atravesso a sala e paro diante da minha foto, olhando para as palavras que disse e as que evitei: "E uma sombra ganhará um propósito. De tocar A Intocável, destruindo A Irmã.". Nenhuma palavra disso está escrita no destino d'A Intocável. Sophie. Sou um acidente de percurso, mas meu destino chega ao fim, pelo dela. Percebo, de repente, que o fim não importa. Ele não pode ser parado e vem quando quer. Arranco a folha sobre minha morte da parede e a transformo em uma bola em minha mão.

Uma profecia diz que eu morrerei antes do dia 30 de setembro. Grande coisa. Não é a minha primeira morte anunciada.

As Crônicas de Kat - A História CompletaOnde histórias criam vida. Descubra agora