I Coríntios 15:25-26 - II

19 5 0
                                    

7 de março

Anika

A sensação de que estou sendo observada tem sido minha fiel companheira nos últimos dias. É ridículo, porque tem acontecido coisas demais para que qualquer pessoa fique me observando, mas certas sensações grudam em você e simplesmente não vão embora. É isso que me acorda às cinco hoje e depois de virar no colchão por muito tempo e jogar fora todos os truques que conheço para me fazer dormir, eu resolvo levantar e descer para ver o sol nascer.

No andar de baixo, uma silhueta toma uma parte da parede de vidro que dá para a cidade. Alguém mais insone que eu observa a escuridão ainda tomada por estrelas. Aperto os olhos para descobrir quem é, mas quando Ellie se vira, percebo que deveria ter adivinhado.

- Formigas na cama? - Ela pergunta, quando paro ao seu lado.

- Bem que eu queria. Eram tempos mais simples. Sensações ruins. Odeio essa maldita ruptura. E você?

- Sonhos ruins. – É a resposta simples.

Ellie tem a mão direita firmemente fechada em seu pingente de safira. A outra mão deixa a parede de vidro para acariciar meu couro cabeludo. Ela sempre faz isso, essas coisas levemente maternais. Não reclamo porque elas fazem com que eu me sinta estranhamente segura. Ficamos em silêncio observando a cidade. Estar dentro dos limites da cidade que mais emana energia bruxa na Europa deixou marcas em todo Exército, mas comigo foi diferente. Metade das bruxas da cidade tem meu sangue e a outra metade se associou com ele em algum ponto. É como se Piatra fosse a cidade das descendentes de Deyah. Eu sou uma delas, a renegada, mas uma delas. Eu senti que pertencia àquele lugar e as bruxas que pediram que eu ficasse, sentiram o mesmo. E eu quero ficar. Ou ao menos voltar, se eu sobreviver a tudo.

- Annie. - Ellie chama. Volto a olhar para ela e vejo que as duas mãos estão no colar agora. - Você tem medo?

A resposta irônica está na ponta da língua, mas eu lembro do que acabei de pensar. Não mais o "quando tudo isso acabar" que aparecia na boca de Mirada o tempo todo. "Se eu sobreviver a tudo". Minha resposta sai complicada:

- Você sabia que eu nunca esbarrei com a Morte quando era viva? Tão poucas de nós podem dizer isso. Talvez ninguém mais. Eu não entendia o que era morrer até que aconteceu comigo. Entendia medo, maldade e guerras. Era grata por me ver protegida de todas essas coisas. Mas eu sabia tão pouco sobre morte que quando eu percebi que você e Kat iriam me matar, eu não tive medo. Porque eu sabia o que ia acontecer. Eu morreria, então eu voltaria e viveria para sempre. Agora eu também sei o que vai acontecer. Sei o que me espera se eu morrer. E agora eu conheço a Morte. Sei quão real e implacável e inevitável ela é. Eu não sou estúpida.

Ellie pisca, surpresa.

- Eu nunca tinha parado para pensar sobre a sua morte.

Olho para a linha do horizonte. O sol nasce do outro lado da casa e mesmo que esteja quase despontando, ainda não recaiu sobre Piatra Neamț. A cidade continua apenas como manchas disformes na minha visão, com pequenas luzes salpicadas.

- Eu vivi a vida mais confortável entre as vampiras do Exército. Tatiana costumava me chamar de princesinha nos primeiros anos, quando você não estava olhando. Minha maior reclamação era o fato de que minha mãe não me deixava usar meus poderes como eu queria. Quando Kat fez seu grande discurso sobre como todas nós experimentamos a dor quando éramos vivas, eu me sobressaltei. Eu nasci em um castelo e cresci em outro. Eu tinha os favores de uma imperatriz. Eu não conheci a dor quando era viva e por mais que eu entenda que depois de todo esse tempo, eu sou uma parte tão ativa do Exército quanto você, ouvir Kat me fez me perguntar porque eu estava lá. Claro que a resposta estava no rosto de Selene. E lá embaixo.

As Crônicas de Kat - A História CompletaOnde histórias criam vida. Descubra agora