Ponderações

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Natsuo sabia que estava errado, disse um monte de bobagens que jamais diria normalmente, porém tudo que envolvia Endeavor o tirava do sério e lhe transformava em outra pessoa. Natsuo não queria ser essa outra pessoa, queria ser apenas ele mesmo.

O que não significava perdoar, fingir que nada aconteceu e seguir em frente. Natsuo não conseguiria perdoar e mesmo que conseguisse, não quereria. Sempre quando via esses filmes ou dramas sobre pais e filhos com relações muito complicadas e no final os filhos perdoavam os pais e todo mundo voltava a se amar como se o passado não existisse, como se não tivesse deixado mágoas, só tinha vontade de vomitar. A vida real não era assim. Você não tem que perdoar tudo os que seus pais fizeram só porque eles são seus pais e a família é um bem maior a ser preservado. Não era como se eles e os irmãos tivessem apenas tomado uma surra de vez em quando por aprontarem e tudo bem, tá tudo beleza. Foram anos de abuso. Se o pai fosse algum cara pobre, a guarda dos filhos já teria sido tomada e ele estaria na cadeia há muito tempo.

Mas Endeavor não era algum cara pobre. Nunca foi. A família sempre fedeu a dinheiro e sangue antigo. Haviam samurais na linhagem. Quantas pessoas no mundo sabem quem foi o seu tataravô e até hoje têm os tesouros dele guardado em um banco? Sem dúvidas, ninguém que precise trabalhar para sobreviver.

O pai casou com a mãe que apesar de vir de uma família falida, ainda tinha o prestígio do nome e o sangue antigo que um dia do passado remoto se cruzou com os dos Todorokis. Tudo para fortalecer ainda mais a família. É difícil descobrir que ele e os irmãos foram produto de eugenia. Se acreditasse em karma, diria que Touya foi ele, mas jamais reduziria o irmão a isso. A doença genética extremamente rara do irmão foi uma reviravolta na família, Natsuo lembrava pouco de quando o irmão não era doente, mas lembrava perfeitamente dos nomes de todos os remédios que ele tomava. Sem exceção. Quantidades altíssimas e com muitos efeitos coletarais, até quando estava saudável, parecia doente.

Quando o irmão foi mandado para a escola, não conseguia saber nada sobre ele e todos se recusavam a contar qualquer coisa. Só soube que Touya tentou se matar na segunda vez que ele tentou e tudo que o pai falou foi: “Ele só quer chamar atenção de novo”. Que tipo de pai é esse?

Natsuo então começou a notar que o irmão não tinha doenças apenas físicas, mas também psiquiátricas, mal sabia o que significava esse nome, mas sem dúvidas não era algo bom. Sempre desconfiou que desde a doença o irmão começou a mudar demais. Quando voltou depois de passar um ano todo na “escola especial” para passar as férias, Natsuo viu que ele trouxe mais remédios na mala e um sorriso tranquilo como nunca viu, nem mesmo antes da doença. Nessa época, Endeavor parecia encantado, passava mais tempo em casa e sempre olhava fascinado para a melhora do filho, podia-se dizer que havia até algum orgulho ali.

Seu irmão está ótimo, não vê? Pare de fazer perguntas. Você não tem que querer nada.”

Natsuo mexeu nas coisas de Touya e encontrou várias receitas com prescrições diferentes, digitou no computador os remédios e confirmou que seu irmão não era apenas fisicamente doente, mas muito, muito doente da cabeça também. Porém, ao contrário da genética, Touya não nasceu com nenhuma dessas doenças, todas foram adquiridas. Se eles vivessem em um lar saudável, Touya seria, nesse aspecto, saudável.

“O que você tá fazendo com as minhas coisas?” Touya perguntou na porta do quarto deles. “É feio mexer nas coisas dos outros sem permissão”.

Touya tinha o rosto cansado, mas sorriu e deu um peteleco no seu nariz. Pegou as receitas de volta e olhou para a tela do computador.

“Você tem tudo isso mesmo?” Natsuo perguntou se virando da tela do site médico para o irmão.

“É, eu tenho.” Touya apenas falou descontraído. “Sou doido, não sabia? Todo mundo sabe.”

Os olhos de Natsuo se encheram de lágrimas.

“Você não é doido, Touya!” Agarrou o irmão.

Se você diz…” Touya o abraçou de volta e então se agachou para falar “Você não devia ter usado o computador para isso, o celular da governanta mostra os sites que acessamos.”

Natsuo sabia disso, mas havia esquecido pois não teria outra oportunidade de mexer nas coisas do irmão.

“Touya!” Endeavor entrou no quarto. “O que está fazendo aqui? Já disse que não quero você mexendo no computador sem supervisão!”

Natsuo diria que era ele que estava usando, porém Touya ainda abraçado a si, apertou o ombro do irmão e falou sereno para Endeavor:

“Desculpe, não vai acontecer de novo.”

Endeavor pareceu ficar satisfeito por um segundo, mas não durou muito. Fechou a cara e disse:

“Venha jantar, mandei fazer peixe para você.”

Touya odiava peixe.

Talvez Fuyumi conseguisse perdoar por ser mais velha e lembrar melhor de tudo antes da desgraça acontecer. Mas Natsuo lembrava desse período também, a vida só era menos miserável naquela mansão.

Endeavor não teve muitos filhos porque queria uma casa cheia ou porque não tinha televisão em casa, ele apenas queria herdeiros, se um não desse certo, ele tinha outros três para substituir. Quando ele começou a separar Shouto do restante dos irmãos, Natsuo viu a história se repetir sem sequer ter acabado e Touya piorar muito, então foi mandado para a “escola especial”. Quando voltou estava tranquilo e Natsuo ficou tão feliz com o irmão ter parado de chorar o tempo todo que queria ir para a escola também. Devia ser um lugar muito bom, Touya estava feliz e qualquer lugar parecia melhor do que a mansão. Contudo, quando as férias acabaram, Endeavor não deixou Touya voltar, um ano depois ele morreu.

E a saúde mental da mãe que já estava se deteriorando antes, entrou numa espiral e ela atacou Shouto pensando ser Endeavor.

Como perdoava algo assim? Por que todo mundo queria que perdoasse? Em algum momento houve um pedido de desculpas?

“Estou tentando mudar.”

Eu entendo que você está muito bravo comigo, eu pretendo recompensar por…”

Como se recompensa uma vida de abusos? Era como se alguém tivesse atropelado outra pessoa com um caminhão e pagasse um sorvete desejando melhoras. O que Kei viu nesse homem? O que viu que fez com que até enganasse Natsuo? Será que Kei lhe enganou mesmo? Lembrou da expressão dele, não queria pensar nisso agora.

Natsuo jamais perdoaria o pai por tudo o que fez, mas esperava que Fuyumi o perdoasse pelas besteiras que disse. Assim que ela chegasse, pediria perdão e não cometeria os mesmos erros do pai.

Capítulo surpresa! Vemos um pouco da mente do Natsuo e um tanto do passado também. O que acharam? Deixem seus comentários, críticas, teorias e elogios.
Até amanhã!
Bjinhus!


O Rei E O PassarinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora