🏠 Vestido de crochê

150 16 1
                                    

Roberta Antunes

As chaves tilintaram na fechadura. Abri a porta e a casa me envolveu em um abraço quente e familiar. O cheiro de bolo de chocolate recém-saído do forno pairava no ar, misturado com o perfume suave da lavanda que minha mãe adorava.

- Mamãe! gritei, meu coração pulsando de alegria.

Ouvi seus passos lentos se aproximando da sala. Quando a vi, meu sorriso se alargou. Era meu pai.

- Oi, pai. Bença! Pego sua mão.

- Deus te abençoe, minha filha. Saudades de você, minha pretinha. Ele beija meu rosto.

- Onde está a mamãe? Ainda está com raiva de mim? Ele começa a rir.

- Esse bolo te fala se está com raiva ainda. Ela está sentindo muitas dores nas mãos. Levantou somente para fazer bolo para Betinha. Ele abre sorriso debochado.

- Ciumento você, hein! Vou subir para vê-la. 

Subo as escadas, deixo a mochila na porta do meu quarto. Bato e entro. Ela está deitada, mas algo estava diferente. Ela parecia mais frágil, os olhos um pouco mais cansados.

- Aha, a filha desnaturada resolveu aparecer, né Betinha! exclamou ela, abrindo os braços. Vem deita comigo, saudades.

Corri para seus braços e a abracei com força. Senti seu corpo quente e frágil contra o meu, e o coração se apertou de saudade.

- Você está com um rostinho alegre, disse ela, acariciando meu rosto. Parece que foi ontem que estava engatinhando pela casa.

- Senti tanta sua falta, mãe, até das brigas, murmurei, enterrando o rosto em seu pescoço.

- Eu também, filha. Também. Fez bolo de chocolate, que você ama. Responde enquanto sinto cheirinho da minha mãe.

- A senhora está bem? Pergunto preocupada.

- Momentos bons, momentos ruins. Como os médicos disseram. Vou entrar com processo contra o INSS para me aposentar. Não aguento mais trabalhar.

- Já tinha tido a senhora, mas vou com as meninas. Depois me passa os documentos. Digo sorrindo.

💭 Agora entendo Elie, realmente é muito bom ter uma mãe.

Minha mãe começou a me atualizar das fofocas da rua. Quem casou, quem separou, a polícia que prendeu o vizinho assaltante e assim vai algumas minutos.

A cama afundava com nosso peso, fechei os olhos, sentindo a paz que somente um lar poderia me proporcionar. Quando minha mãe traz minha infância para conversa.

- Lembra quando você era pequena e tinha medo do escuro, depois daquele incidente? perguntou ela, sua voz suave quebrando o silêncio.

- Lembro sim. A senhora vinha me buscar no meu quarto e me colocava ao seu lado para eu dormir.

- E você sempre pedia a mesma história, não é?

- A do príncipe que tinha que atravessar o mar para encontrar a princesa. Sorrimos juntas.

- Sabe, filha, começou ela, sua voz mais baixa, sei que erro muito contigo, mas amo demais meus filhos. Sei que me cobra certas coisas, mas você sempre foi a mais forte dos três.

- Mãe, por favor, não diga isso. Você é forte. Estou envergonhada.

- Sou sim, mas a fibromialgia me deixa fraca às vezes. Um silêncio se instalou entre nós.

- Mãe, tudo vai dar certo , disse.

- Estava procurando meus carnês do INSS, olha que encontrei. Ela se levanta e tira do baú. É o vestido de crochê que usou quando nasceu, disse ela, sua voz embargada.

Começamos a chorar juntas, abraçadas. Era a primeira vez que ficava tanto tempo longe de casa, e a saudade da minha mãe era imensa, mesmo com toda diferenças, brigas e discussões, senti o amor dela. Aquele vestido era um símbolo de tudo o que havíamos vivido juntas, de todas as nossas alegrias e tristezas.

Naquele momento, deitada ao lado da minha mãe, abraçada ao vestido de crochê,  entendi o verdadeiro significado do amor maternal. E soube que, não importa o que acontecesse, eu sempre estaria lá para ela.

Depois de toda a emoção do reencontro com D. Márcia, fui ao encontro de Vera, estava no ensaio da escola de samba. Mamãe contou que discutiram e que Vera a chamou de narcisista, que mesmo não sabendo o que significava, sabia que não era coisa boa. Minha mãe não é narcisista, centralizadora, excesso de amor e dependência emocional dos filhos. Isso ficou claro para mim. Estou dentro do barracão, o samba está a todo vapor. Ela me vê, aceno para ela. 

Alguns horas depois…

- Vera, não chame a mamãe disso. Precisa entender melhor. Estamos caminhando de volta para casa.

- Ela me tira do sério, quando vê, já tinha chamado. Ela começa a rir.

- Oh, pior que não entendeu, mas tem certeza que coisa ruim. Nós começamos a rir.

- Mamãe é figura. Vamos lá no salão. A nossa velha tem razão, você vai ficar linda com cachos iluminados.

- Vamos, quero resolver hoje. Estou doida para descansar. Ela para no meio da rua.

- Você não vai com a gente na balada? Começo a rir de nervoso.

- Odeio balada, você, Mia e Milena sabem disso, então vou ficar em casa. Começamos a caminhar novamente.

- Betinha, precisa sair para encontrar um novo amor. Ano que vem será meu último desfile, vou parar. Eu paro.

- Sério? Mamãe já sabe? Se decidiu assim, é porque acredita que é melhor para ti. Digo apoiando sua decisão. Vejo seus olhos se encherem de água.

- Cansei de ser passista. Quero novas coisas. Fico imaginando se não tivesse abortado aquela criança, hoje teria 3 aninhos, Betinha. Eu a abraço. 

- Não fica presa no passado, minha irmã. Infelizmente não podemos voltar atrás, mas pense no presente. Ela me olha.

- Foi nessa data, que fiz o aborto. Todos anos são assim, vem vamos virar aqui para chegar no salão.

Vera fica o restante do caminho em silêncio. A três anos ela se envolveu com um homem que conheceu nos ensaios. Ela se apaixonou perdidamente, depois de alguns meses, a bomba: grávida. Ele era advogado importante fora do Brasil. Então sem comunicá-lo fez o aborto. Ela me contou dois dias depois que tinha feito. Ele a procurou várias vezes querendo entender o porquê se afastou dele, mas simplesmente desistiu de tudo. Parece que tempos depois, ficou sabendo do aborto. Durante esse tempo tenta disfarçar essa dor, mas sonha como poderia ser sua vida com essa criança. Essa fama de passista lhe deu algumas coisas, mas também tirou muitas. 

Algumas horas sentada…

Meu amor de gizOnde histórias criam vida. Descubra agora