Noite. Rua.
A noite em Dínamo – a cidade em que vivo, cercada por uma cadeia de montanhas e com um rio que a atravessa – é iluminada pela luz da lua, mas as sombras dos prédios escondem todo tipo de coisa. A noite é o horário dos fatalistas, dos salteadores e dos sádicos.
E, apesar da escuridão, há luz. Há luz por todos os lados. Em marquises iluminadas por néon, nos faróis brancos de leds dos carros, nos outdoors animados que se modificam a cada dez segundos no topo dos prédios ou pendurados em suas paredes.
As ruas estão cheias. Dínamo nunca dorme. Há uma multidão caminhando em alguma direção, cada uma das pessoas que a compõe, sozinha.
— Jayden, eu estou com um problema no meu display.
O display. Também chamado de primeira tela, ou extensão. Uma tela implantada pixel a pixel no antebraço esquerdo de todos os habitantes da cidade. Primeiro veio um chip de geoposicionamento, encravado no fundo do osso, quando eu era novo demais pra sentir qualquer coisa. Depois vieram as conexões que ligam o chip ao restante do braço e às camadas mais exteriores. Então, um amontoado de pontos luminosos capazes de brilhar em todo o espectro de cores, espalhados em um retângulo quase perfeito no lado de dentro do antebraço. Nossa assinatura digital perto da dobra, pela qual os escâneres passam e identificam cada um de nós. E, na própria articulação, um dermatrodo para ligação direta. Nossa conexão permanente com a Teia é feita através dessas extensões embutidas em nossos braços.
Alguns dos outdoors anunciam uma das mais interessantes possibilidades para quem tem créditos suficientes: um implante cerebral. Chamam de "conexão genuína". O link integral, uma âncora com a Teia. Dizem até que é possível compartilhar pensamentos através dele.
Como tenho poucos créditos, fico apenas com o display original, o hardware intocado.
— Hardware ou software? — Pergunta Jayden.
— Software. Você é um hacker, certo? Só sabe lidar com o software, de qualquer forma.
Ele pigarreia, incomodado.
— Sei mexer com o hardware, também... um pouco — retruca. — Qual é o problema?
— A tela ficou azul.
Jayden fica calado por um instante ou outro, como se pensando.
— Quando isso aconteceu?
— Duas noites atrás. Sabe o que isso significa?
— Depende muito. A tela azul significa que houve um erro. Significa que seu display travou. Algum mantenedor apareceu para falar com você?
— Apareceram só na hora, mas eu fugi.
— Harlan, o que aconteceu duas noites atrás? — Pergunta ele.
Continuo caminhando por mais alguns metros antes de falar qualquer outra coisa.
— Duas noites atrás eu saí para roubar um dos meus alvos. Seu nome era Morfeu.
— Era — resmunga Jayden. — O nome dele era Morfeu.
— Foi morto na mesma noite. Antes de eu conseguir roubá-lo. Foi por isso que o meu display ficou com a tela azul. Eu estava perseguindo ele por um beco e uma garota simplesmente apareceu. Foi tão súbito que eu poderia jurar que ela se materializou naquele beco. Ela me ameaçou e disse para eu ficar longe, mas eu fui atrás dela quando começou a correr na direção do meu alvo.
— Certo.
— Ela lutou com o Morfeu, eles... eu ainda estou tentando entender o que aconteceu. Fato é que eles se conheciam, e ela, por alguma razão, queria matar ele. E matou.
— E você ficou só olhando enquanto ela fazia isso.
— Foi tudo muito rápido.
Jayden fica calado por alguns instantes, e eu, também. Sei muito bem o quão enfaticamente são proibidos atos fora do que é previsto no display, e o que possivelmente significa o que aconteceu entre Morfeu e a garota. A consequência apareceu pouco depois da cerimônia de inserção.
— Você também recebeu um aviso sobre uma atualização? — Pergunto.
— Sim. Eu vi no display. Pelos comentários de outras pessoas, parece ser das grandes. Todo mundo recebeu o aviso.
— Acha que pode ter alguma relação com o que eu vi?
— Depende de quem são essas pessoas. Se o seu alvo devia morrer em breve, pode ser que o motivo tenha sido outro. Pra ter uma atualização de grande alcance, como essa, é preciso o envolvimento de alguém realmente importante, que tenha muita coisa pra fazer. — Responde Jayden.
Olho para meu display e para o pequeno ícone vermelho do aviso de atualização, piscando discretamente.
— Harlan... você sabe quem era essa garota?
Respiro fundo antes de responder.
— É a Kali.
Jayden fica quieto por alguns instantes, e eu faço o mesmo.
— Bem, você é mesmo um cara de sorte. — Jayden dá uma risada breve.
— Cale a boca.
— Acho que já sabemos o que foi que causou a atualização — resmunga ele, ligeiramente incomodado com a minha grosseria. — Quanto à tela azul, você pode ficar tranquilo. Eles certamente vão arrumar tudo amanhã, na atualização e, se você tiver alguma dúvida, é só perguntar para eles. Os programadores vão saber o que fazer e saberão responder às suas perguntas.
Concordo com a cabeça, meio a contragosto.
— Você vai com o Mael para a atualização?
— Vou, mas você pode vir junto.
— Certo. Encontro vocês no dormitório.
Toco no display e desligo.
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Obrigado por ler o terceiro capítulo de Deuses e Feras! Lá vão três curiosidades a respeito desse capítulo:
1) O "dermatrodo" também vem de Neuromancer, em que a conexão é utilizada para entrar no ciberespaço e acessar a internet.
2) O implante cerebral é importantíssimo mais adiante no livro, e não é à toa que ele aparece tão cedo.
3) Desde o começo eu queria que esse capítulo fosse uma conversa entre o Harlan e o Jayden, mas de maneira não-presencial. A ideia era mostrar como a internet modificou as coisas a ponto de parecer que estamos frente a frente com alguém mesmo sem efetivamente estar nessa situação.
Continue lendo Deuses e Feras! E não se esqueça de votar e comentar em seus capítulos favoritos! :)
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Deuses e Feras
Ciencia FicciónEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...