Capítulo 95

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Eu nunca passei tanto frio em toda a minha vida.

O ar que entra em meus pulmões é gelado e afiado.

Minha mão está dormente, ainda presa na algema eletromagnética.

Meus olhos lacrimejam tanto por conta do frio quanto pelo que está prestes a acontecer.

Sobre o meu colo repousa a faca.

A faca com que Kali matou Morfeu.

A faca com que ela me esfaqueou.

A faca com que devo matá-la.

Ela está do meu lado esquerdo.

Seus pulsos também estão presos. E, se estivessem soltos, mesmo assim eu não seria capaz de segurar sua mão. Mas, se eu ainda tivesse uma mão esquerda, e se as nossas mãos estivessem livres, pegar na mão dela seria a única coisa que eu iria querer fazer.

A última coisa que eu iria querer fazer.

Kali não disse mais uma palavra sequer.

Seus lábios tremem. Em seus olhos há lágrimas, como nos meus, e vejo que ela faz de tudo para impedi-las de cair. Sua mão direita sangra pouco a pouco desde que ela segurou a lâmina da faca, mas ela não parece se importar com o sangue que escorre pelos seus dedos.

O veículo que nos trouxe até aqui fica parado na rua próxima. As cadeiras de rodas em que estamos instalados são empurradas lentamente pela calçada até o ponto em que tudo há de terminar.

E não poderia ser outro.

O beco em que a vi pela primeira vez.

Meus olhos buscam a parede na qual ela se escondeu, um vulto negro nascido da noite e das sombras.

Então, eu olho para ela.

E ela olha para mim.

As cadeiras são paradas no meio do beco vazio. Agora, ela está à minha direita. Os mantenedores que nos trouxeram desativam as algemas, dão a volta e retornam. E desaparecem.

Estamos sozinhos.

O frio aumenta gradualmente conforme o Sol desce atrás das montanhas e as sombras tomam o beco por inteiro. Em algum lugar, uma câmera nos grava. Talvez Dínamo seja um panóptico, mas, agora, somos vigiados. Não há como fugir do que deve acontecer. Não há como fugir do que é destino, do que é fatal.

Uma lágrima desce pelo rosto dela.

Outra trilha seu caminho pelo meu.

Eu gostaria de poder abraçá-la, gostaria de poder beijá-la uma última vez.

Mas nada nunca esteve tão perto, mas tão distante de mim, ao mesmo tempo.

Eu estendo a mão em sua direção.

E ela, a sua, na minha.

Nossas palmas se tocam delicadamente, e os dedos se entrelaçam aos poucos, até que se encaixam.

Aperto com força sua mão.

E ela, a minha.

— Eu gostaria que tudo isso fosse diferente — eu digo, a visão turva pelas lágrimas. — Eu queria que tudo fosse mais simples, queria ser capaz de continuar lutando — eu fecho os olhos com força. Então olho para meu braço e minhas pernas. — Eles me inutilizaram. Eu já não sou mais nada.

O que se faz no momento em que se sabe que não é mais possível lutar?

Quando a única opção possível é desistir?

Eu vejo isso nela. Em mim, refletido em seus olhos.

Nós desistimos.

Este é o fim.

— Será que algum dia nós tivemos alguma chance? — Eu pergunto, a voz tremendo.

Eu choro, enquanto olho para ela. Ela chora, enquanto olha para mim.

Suas mãos sobem para sua nuca e ela desprende os ímãs do colar dourado com pingente de aranha.

E o estende em minha direção.

Eu seguro o colar, o metal gelado de encontro à minha pele.

Ponho-o sobre meu colo, junto da faca.

E olho para ela.

A mão de Kali permanece no ar entre nós, aguardando.

Seguro a faca pelo cabo, e estendo-a para a garota. Para a fatalista. Para a assassina.

Para a rebelde.

— Nós nunca tivemos opção. — Ela diz.

Sua mão esquerda segura a faca pela lâmina.

A faca é o elo que nos une. O que abriu o nosso arco e o que, agora, há de fechá-lo.

A última coisa que fazemos, juntos, é chorar.

O Sol desce atrás das montanhas, atrás do muro, e a escuridão toma o beco por completo.

Eu olho dentro dos olhos dela.

Mas agora já não há mais nada dentro deles.

Apenas vazio.

Ficamos paralisados.

Em meio às sombras do beco, já não nos movemos mais.


FIM

Deuses e FerasOnde histórias criam vida. Descubra agora