Manhã. Rua.
O impacto vem sem qualquer aviso.
Meu display não se ilumina. Meus olhos não veem. Não há qualquer tipo de som.
Apenas impacto.
Meus pensamentos se embaralham e eu simplesmente desabo no chão, de joelhos.
Minha visão fica turva, enegrecida. Eu cambaleio e viro a cabeça para os lados, tentando identificar meu agressor. O punho que me acertou volta a se aproximar de mim, agarra minha camiseta e me puxa com força para um beco próximo, apenas para me jogar na parede e acertar meu rosto do outro lado, dessa vez.
Sinto gosto de sangue.
— Seu puto! — A voz de Kali grita dentro da minha cabeça.
Ela segura meu pescoço e meu queixo, e bate o verso de minha cabeça contra a parede. O sangue verte. A dor é forte, parecendo pulsar.
Os olhos negros da garota são um incêndio, mas ainda parecem desfocados, para mim.
O buraco negro do cano da pistola, não.
— Kali, eu—
— Eu não vou esperar, seu puto — ela diz. — Eu não tenho mais nenhuma razão para esperar.
O dedo dela não pousa sobre o gatilho. Ele pesa sobre o gatilho. O vórtice negro mira o meio de minha testa. Ele me encara, me ameaça, me amedronta. Dessa vez, não há qualquer hesitação. O lábio dela não treme, nem seus dedos, nem nada.
Ela veio até aqui para me matar.
— Você me nocauteou e me roubou, Harlan — ela diz, a voz mais fria do que o ar à nossa volta. — Você cumpriu com o seu destino e com seu display, exatamente como deveria fazer. A Teia nos venceu.
— Eu tinha um prazo — tento me defender. — Assim como você, eu tinha um prazo, eu precisava roubar esse colar em setenta e duas horas, senão—
— Senão o quê? — Pergunta ela. — O que mais a Teia pode fazer contra nós?
Eu não tenho uma resposta para isso.
— Onde está o colar? — Ela rosna. — Onde está a porra do colar?
Fico quieto.
— Ele era Classe 1, mas eu sei que mudou. Sei que ele se tornou Classe 3 — ela se aproxima e puxa a gola de minha camiseta violentamente. — E ele não está com você. Onde está?
Abro a boca, mas a voz não sai.
— Que pergunta imbecil — murmura ela. Seus olhos continuam nos meus. Estão cravados como estacas de metal no fundo de minha cabeça, atravessando-a e me pregando à parede. — Eu sei exatamente onde ele está. Sei com quem ele está.
Ela para por um instante, mas nada nela hesita. A mira da arma não desce nem um pouco, seus olhos não saem dos meus.
— Você sabe o que aquele colar significava para mim? — Pergunta ela. — Eu o roubei de você. Roubei de você na única vez em que fui realmente livre. Na única vez em que realmente tive alguma escolha.
Eu engulo em seco.
— Aquele colar significava você — diz a fatalista. — Significava tudo o que eu queria ser, tudo o que eu queria fazer. Tudo que eu imaginava que sermos pares únicos um do outro significava. Era a obsessão. Eu faria qualquer coisa para mantê-lo intacto, para mantê-lo comigo. O colar com pingente de aranha significava que eu faria qualquer coisa para ficar com você.
Uma dor forte toma o meu peito. Algo se torce dentro de mim
— Você disse...
Ela me ameaça outra vez com a pistola. Ela encosta o cano na minha testa.
— O que, Harlan? — Pergunta. — O que eu disse?
— Eu disse que Lenina havia dito que você roubou o colar porque me amava — digo. — Eu disse isso a você, e você disse que não era verdade. Não era verdade que você me amava.
A respiração dela sai entrecortada.
Seus olhos lacrimejam.
— Sim. Eu disse isso.
A primeira de suas lágrimas despenca de sua pálpebra.
— Porque nunca deixou de ser verdade.
Finalmente sua mão treme, e ela já não parece mais certa do que está fazendo. Segura a pistola com as duas mãos para firmá-la, mas como corredeiras descem as lágrimas por sua face. Ela abaixa a arma e leva as mãos ao rosto. Um círculo marca o ponto onde o cano da pistola tocou minha testa.
— Kali.
— Me deixe em paz, Harlan. — Ela diz, enquanto se vira e anda pelo beco.
Dou um passo em sua direção.
Ela saca a pistola.
— Não me siga. Eu ainda posso matá-lo.
A pistola apontada em minha direção não deixa dúvidas.
O ponto vermelho sobre meupeito, também não.
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...