Três dias mais tarde. Centro de treinamento da Kali.
Uma chicotada rápida nas costas, um vergão na pele, um filete fino de sangue escorrendo.
Há um fino e comprido tubo metálico na mão da tutora da fatalista, andando à sua volta. Um tubo usado para punir. A garota está com os braços para cima, segurando as correntes que prendem um saco de pancadas no teto. Suas costas estão à mostra, a parte de trás da blusa passada por cima da cabeça e presa como uma camisa de força no seu queixo.
Kali Assange fica parada, quieta.
Parece alguém completamente diferente da pessoa que estava no beco, assassinando meu alvo. Alguém mais próximo da garota que perdeu o controle e gritou depois da atualização. Pelo visto, sua tutora é uma das pessoas capazes de dobrá-la.
— Certo — diz a tutora, voltando à fatalista e esperando de braços cruzados. — Vamos continuar.
Kali, por sua vez, solta as correntes, os nós dos dedos brancos, e puxa para baixo a blusa cinza. Ao tocar na pele artificialmente escurecida, de leve, de suas costas – ao contrário da minha pele, naturalmente negra –, o tecido adquire riscos vermelhos de sangue.
Tomo um momento para admirá-la mais uma vez, como já fiz em tantas outras ocasiões. Meu par é a garota de altura mediana caminhando de pés descalços no tatame, corpo magro, mas com seios e traseiro salientes, pernas torneadas de alguém que treina muito. Apesar de os cabelos geralmente o esconderem, seu rosto é fino, com nariz e boca também finos, e olhos aquilinos. Seu olhar, porém, é como se pertencesse a outra pessoa. Ao mesmo tempo em que é profundo, é raso. Como se escondesse algo por debaixo de sua superfície. A barreira que impede qualquer um de ver esse segredo parece feita de puro gelo.
Pelo que entendi, todo esse centro de treinamento é exclusivamente usado por Kali e sua tutora. O que é justificável pelo fato de que fatalistas são amplamente malvistos e odiados, o que significa que a maior parte dos componentes dessa subdivisão dos mantenedores é solitária.
O centro de treinamento é um lugar grande o bastante para comportar todas as ferramentas de Kali, mas aconchegante, ao mesmo tempo. Tem uma pequena arena no centro, com tatame e um saco de pancadas, um mínimo estande de tiros que atravessa a sala na diagonal, uma seção com pesos e máquinas para musculação, e uma pra treinamento de agilidade, com obstáculos. Parecida com o que é usado nos treinamentos de le parkour dos salteadores. Uma porta leva até alguns vestiários, que parecem meio deslocados pelo fato de que só ela treina aqui. Do vestiário, é possível chegar a um mezanino, onde estou escondido agora. Parece ser usado muito raramente, o que me garante estar a salvo.
A única razão pra eu ter encontrado esse centro de treinamento é o console do lado da porta de entrada. Toda vez que alguém entra em algum lugar, sendo dormitório, refeitório ou qualquer outro, precisa fazer check-in. A partir disso é possível localizar praticamente qualquer pessoa inserida na Teia. E ser localizado, também.
— Quero que você faça o movimento correto, dessa vez. — Diz a tutora, austera.
Kali concorda com a cabeça e crava os olhos no saco de pancadas.
Um, dois, três socos, um chute. Uma joelhada. Outro chute, mais três socos. Ela finaliza com um golpe de cotovelo, que enverga o saco e deixa nele uma marca.
— Ótimo. — Diz a tutora, o rosto dela mostrando qualquer coisa, menos satisfação.
— Para que eu preciso dessas lutas antigas? — Pergunta a garota, evitando os olhos da outra, enquanto massageia o cotovelo. — É bem mais fácil pegar uma pistola e atirar do que dar um soco em alguém. Uma bala é mortal.
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...