Sol a pino. Praça da Libertação.
Há oito filas paralelas atravessando a praça, no formato de um retângulo. Ao final das filas há um gigantesco galpão. A enorme porta de entrada foi recolhida e, agora, só resta um arco aberto. Lá dentro há oito máquinas enormes e tubos de metal espalhados por toda parte, soltando vapor de água intermitentemente. Sobre o grande arco da porta há um prisma sólido hexagonal, como o que estava na lapela do orador, no outro dia. O prisma representa a Teia.
Eu e Jayden estamos juntos a uma boa distância da entrada. Mael está na fila ao nosso lado, referente à casta dele, a dos eruditos. Perto o bastante para conversar e, ao mesmo tempo, manter seu lugar na fila.
— Harlan, eu quase me esqueci. Me dê o seu braço, quero ver uma coisa. — Diz Jayden.
Dar nossos braços esquerdos – e, automaticamente, nossos displays – é algo que fazemos todos os dias, quase o tempo inteiro. Precisamos mostrá-los ao entrar em uma sala, passar em um console, ao ir para o centro da cidade. Dessa vez eu o estendo a Jayden, o garoto magro e alto, de pele clara e cabelos loiros, que compartilha comigo o dormitório e a casta. Somos, os dois, mercadores, da subcasta dos salteadores.
— O que foi? — Pergunto.
— Só quero ver o que aconteceu. Anda funcionando normalmente? Notou alguma diferença?
— Acho que tá funcionando direito — digo, tentando me lembrar. — O único problema que aconteceu foi naquele dia, quando ele desligou e ficou com a tela azul. Mas, depois, ele ligou de novo e só deu uma travada, antes de estabilizar. E já estava conectado de novo, normalmente.
— O display nunca desliga. — Diz Mael, na fila ao lado.
Mael é o garoto que dorme no nosso dormitório só porque é o novo namorado do Jayden, que hackeou a tela de check-in na entrada e conseguiu abrir uma exceção nos códigos. O Mael é mais baixo e gordo que o Jayden, a pele é mais morena – mas só um pouquinho –, e os cabelos marrons, bem escuros. Sabe muita coisa sobre burocracia e sobre a própria Teia, embora raramente fale qualquer coisa a respeito. Eu e Jayden achamos que ele desconfia que possamos traí-lo e vender as informações que ele der. É natural, já que eles namoram há pouco mais de um mês e meio. Eu também não confio nele.
Olhamos para ele.
— Nunca? — Duvida Jayden.
— Nunca — responde ele. — Quero dizer, o requisito básico para o display estar funcionando é ter energia pra rodá-lo. Como ele funciona com energia vital, a energia produzida pelo nosso próprio corpo, a única maneira de você desligá-lo é morrendo ou decepando o braço. Afora isso, ele só vai reiniciar. Deve ter sido isso que aconteceu com o seu, "naquele dia" — Mael faz um sinal com a cabeça na minha direção. — Na atualização acontece a mesma coisa. Eles só reiniciam.
Tanto eu quanto Jayden concordamos com a cabeça. A fila anda um pouco, e avançamos três passos pequenos.
— O que aconteceu? Qual foi o erro? — Pergunta Mael.
Olho para Jayden levantando uma sobrancelha, em dúvida se devo compartilhar com o outro garoto o que aconteceu. Ele toma a decisão por mim.
— Quebra no fluxo. — Ele simplesmente diz.
Os displays servem, antes de qualquer outra coisa, para guiar as vidas de todas as pessoas dentro do sistema da Teia. Em sua programação, além de todas as funcionalidades complementares, temos quatro galerias responsáveis por nos oferecer os caminhos que devemos seguir. A primeira das galerias é relativa à casta. Como sou um mercador salteador – minha função é a de estabelecer a rotatividade de bens retomando objetos pertencentes à Teia e devolvendo-os a ela –, a minha primeira galeria tem a assinatura digital de todas as pessoas que devo roubar. Morfeu era uma dessas pessoas, e o item que eu deveria devolver à Teia era a sua faca de gume laser.
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Deuses e Feras
Fiksi IlmiahEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...