Fim da tarde. Praça Atômica.
— O que estamos vivenciando é a evolução. O progresso.
A praça está completamente lotada. É um espaço circular que ocupa uma grande área calçada, e a multidão inteira está olhando para o centro, onde se ergue um palco junto de uma enorme escultura que simboliza nossa principal fonte de energia: um globo de vidro e metal com elipses o circundando. Quatro grandes telas projetadas mostram o orador e os cem jovens – exatamente cem jovens – de dez anos, atrás dele.
— Evoluímos, em uma centena de anos, o que se esperava em apenas um milhar — ele diz, sua voz ecoando dos alto-falantes. — Somos senhores de nós mesmos. Agora, um único homem tem o poder de toda a humanidade, pois somos todos parte de uma mesma entidade. Uma entidade que, por nós, é chamada de Teia. Uma unidade à qual estamos conectados em cem por cento de nosso tempo e da qual dependemos para sobreviver.
Vejo, no orador, uma mania minha.
A mão direita dele sobe para a lapela de seu terno. Ele busca por alguns instantes e encontra um broche muito pequeno: um prisma hexagonal feito de ouro. Quando eu procuro, me frustro. Minha mão e meus dedos ficam o tempo inteiro buscando pelo colar dourado com pingente de aranha que deveria estar em meu pescoço.
Mas não está.
— Hoje somos independentes de uma única pessoa, de um imperador, um governante, um presidente. Conhecemos, agora, o verdadeiro significado da autocracia, em sua etimologia mais primordial! Um poder por si só, um poder que existe sem desmoralização, exclusão ou burocracia. Um Estado pelo Estado, uma Teia pela Teia!
A multidão solta um urro de compaixão e concordância. Esses são nossos valores básicos.
— Somos governados e governantes a partir do momento em que cada um tem o mesmo valor e poder do outro. A Teia é o que nos proporciona a liberdade e a segurança, condições primordiais para nosso progresso! A Teia é nosso veículo, é o poder humano transplantado em máquina. Nos unimos e evoluímos: alcançamos o auge de nossa sociedade com o que somos agora.
Ele se vira para os jovens atrás dele.
— Cada um de nós tem seu lugar dentro da Teia, cada um de nós é único e essencial para o futuro. Todos vocês são, à sua própria forma, insubstituíveis. E vocês têm em suas mãos e seus braços o destino da Teia: somos, nós mesmos, o futuro!
A excitação continua. Os jovens atrás do orador são os que mais aplaudem, apesar de estarem claramente ansiosos.
O primeiro deles dá um passo à frente.
A cerimônia da inserção. O que assistimos hoje, e em todas as semanas, é um rito de passagem da etapa de preparação para a vivência em sociedade. Os cem jovens são separados em castas que fundamentam a sociedade – somos eruditos, artífices, políticos, curandeiros, mantenedores, geradores, subsistores, mercadores –, cada uma com sua função específica e subcastas, que gerenciam melhor essas mesmas funções.
Há um programador, da casta dos políticos, sentado junto de uma máquina ao lado do orador. O primeiro dos jovens vai até ele e o oferece o braço esquerdo, do qual sai uma luz fraca. Um escâner passa pelo braço e um cabo é plugado próximo à articulação.
O rosto do garoto, que aparece enorme nos telões, mostra dor e orgulho foras do comum. Seu rosto é mostrado de baixo para cima. Ele parece muito maior do que realmente é.
Ao mesmo tempo, o orador continua seu discurso.
— A Teia é o que nos torna grandiosos. É à Teia que devemos toda a nossa gratidão, disposição e trabalho. Com ela, tornamo-nos o que sempre quisemos ser...
O homem segura o ombro do garoto.
— Completos.
Sabemos exatamente o que vem a seguir. O rosto do orador, a lágrima que corre pelo canto de seu olho e as palavras que ele profere de olhos fechados. As palavras que todos nós repetimos.
Todas as semanas.
— A Teia é sua própria soberana e tudo sabe, tudo pode, tudo engloba. Há um lugar para todos em seu seio, onde cada um existe no geral e no individual, ao mesmo tempo. O compromisso de cada um com a Teia é o de seguir seu destino e o de tornar-se, um passo a cada vez e na linha reta que lhe foi designada, uno. Juntos, somos mais fortes e, com a força, seremos, para sempre, invencíveis.
A partir de agora, os cem jovens passarão pelo mesmo programador, que passará o mesmo escâner em seus braços e plugará o mesmo cabo negro em cada uma de suas articulações. Quanto à multidão, vai se dispersar aos poucos após a cerimônia. Antes disso, todos precisam passar pelos programadores que dão acesso ao restante da cidade. Eles irão nos escanear para descobrir o que temos feito. E se temos cumprido com nossos destinos.
Enquanto isso, o orador ficará sobre o palco, observando tudo. E, quando todos os jovens já tiverem passado, ele vai se virar e ser o centésimo primeiro a passar pelo programador.
Depois, todos podem ir embora.
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Bom, você chegou ao final do segundo capítulo do meu livro! Muito obrigado por continuar lendo!
Aqui vão duas curiosidades a respeito desse capítulo:
1) Essa provavelmente vai ser a mais óbvia de todas as curiosidades que eu vou escrever, e é tão básica que eu não vou me dar ao trabalho de justificar: a Teia é a internet. Fim.
2) O símbolo oficial da Teia é um hexágono por uma razão muito simples. Eu preferia que fosse um polígono de oito lados (para refletir as oito pernas das aranhas), mas o prisma de seis lados foi escolhido porque é um dos principais componentes do logotipo do programa de espionagem norte-americano PRISM, denunciado por Edward Snowden poucos anos atrás. Voltaremos a falar disso em breve.
Enquanto isso, que tal seguir em frente nessa história? Não se esqueça de votar e comentar nesse capítulo!
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...